1.4 O tempo é interior ao homem
O tempo, criatura temporal de Deus, está próximo da alma do homem, da interioridade.
Agostinho inicia sua pesquisa sobre o tempo em uma perspectiva fenomenológica, desvelando o que está encoberto, iniciando pela dimensão pré-filosófica da vida diária, e se encaminhando na interiorizarão do homem.
A compreensão dos conceitos agostinianos de tempo pairará sobre o seu conceito de humano. Para alguns, Agostinho era o descobridor do homem, não só pela importância que a este dispensou, mas também pelo estilo de sondagem das profundidades humanas. A descoberta do homem ultrapassa este no movimento do seu próprio processo, guiando-lhe à transcendência. Sendo assim, analogamente ao conceito de tempo, deveremos também contemplar o conceito de homem em Agostinho.
O enfrentamento da pessoa humana, dramática, pessoalmente sentida e intensificada pelo cristianismo, levou Agostinho a questionar a antropologia antiga e a cultura romana, petrificadas no seu conformismo de época terminal. Esta exterioridade alienante é substituída pela atividade interior, marcando assim um horizonte definitivo da antropologia ocidental.
O dualismo corpo-espírito é por vezes vivamente acentuado, constituindo uma realidade nova, que a terminologia platônica disfarça. Não obstante as angustiantes divisões psicológicas, a exibir um mundo de contradições, o homem é para Agostinho um Ser Uno. Não se pode conceber a humanidade sem ter em mente que esse Ser, em toda a sua multiforme exterioridade e complexidade, consiste em apenas um Ser, dotado de harmonia e sincronia. O homem, por ser criatura criada à imagem e semelhança de Deus, em seu ser harmônico é Uno. Mesmo o advento do pecado, cuja conseqüência foi a corrupção de toda a humanidade, é extinto em seus frutos mais paradoxais na Graça de Deus.
Por sua vez, a divisão temática da alma, ratificada pelo modelo trinitariano, procura antes promover o dinamismo do homem, que estabelecer divisões insuperáveis. No jogo dinâmico das faculdades, em contraste com a antropologia antiga, predominantemente intelectualista, a vontade sobrepõe-se à inteligência. Sendo a natureza da memória profundamente alterada, em que avulta a superação da reminiscência platônica, conferindo-lhe uma dimensão viva, comunitária e cultural, estabelece também a articulação entre história e eternidade. Enquanto a eternidade é dita um atributo divino, a história é privilégio humano, cujo desenho é apresentado pelo ser e pelo devir, que a cada instante se realiza em ser - um constante vir a ser. Mas tal realização, mais que externa, é algo interno, íntimo e entranhado no ser.
Estamos assim perante um novo homem psicológico, mas também ético, informado e unificado pela dinâmica do amor. O homem, em Agostinho, não pode mais ser visto como um ser cuja exterioridade o determina, e nem como um ser protocolar ou formal. O homem é um ser cuja alma sente, vive e delimita o ser.
Fazer distinção entre a questão do homem e a de Deus em Agostinho é coisa difícil. O homem foi criado a sua imagem e semelhança, recebendo dEle seu espírito. Para que o homem descubra Deus, deverá buscá-lo na sua mais íntima interioridade. Deus não pode ser encontrado fora do homem, mas no homem, pois sua comunhão é completa. Deus é encontrado no homem. Do mesmo modo, se o homem deseja encontrar-se, não será em seu exterior que o fará. A busca do humano deve ser a partir da sua própria interioridade. Para atingir tanto o homem quanto a Deus, o caminho é o mesmo: a interioridade, onde o homem, ao descobrir-se a si próprio, encontra irrecusavelmente Deus.
Mas esta intimidade incrível entre Deus e o homem não exclui a existência exterior a este relacionamento. A interioridade do homem exige também a interiorização de um cosmo externo a ele. Nesse relacionamento entre Deus e o homem, o mundo não emerge irrecusavelmente no ritmo do percurso para a interioridade e transcendência, pois só o homem e Deus seriam irrecusáveis. Mas em um sentido fenomenológico ou até mesmo ontológico o mundo é irrecusável. E por isso a sua origem foi um problema pelo qual Agostinho se interessou desde o início de sua atividade filosófica. Para ele, antes de sua Conversão, o mundo era uma emanação de Deus, fragmento Seu; concordando com Plotino , onde através de sua obra Enéadas , divulga que o mundo é uma emanação divina, procedendo de Deus, sem que Ele o saiba. Porém, depois de sua conversão, afirmava que o mundo foi criado por Deus mediante uma ação consciente e livre. Deus criou o mundo do nada, segundo as idéias - arquétipas que se encontram no Logos, o Filho de Deus. O homem, em sua busca pelo divino, se defronta com Sua criação. E nesse confronto se vê como espectador da criação , ao mesmo tempo em que se percebe como Ser criado. Compreender-se significa também compreender seu mundo.
“Vós, no princípio que procede de vós, e na sabedoria que procede da vossa substância, criaste alguma coisa do nada. Criaste sim o céu e a terra, sem o tirardes de vós. Doutro modo seriam iguais a vosso Filho Unigênito, e por isso mesmo, iguais também a Vós. Ora, de modo algum seria justo que fosse igual a Vós o que não é da vossa substância. Nada havia fora de Vós, com que os pudésseis criar, Ó Trindade Una e Unidade Trina; do nada, pois fizeste o céu e a terra, àquele,grande, e a esta, pequena, pois sois Onipotente e Bom para criardes tudo bom: um céu grande e uma terra pequena. Só Vós existíeis, e nada mais. Deste nada fizestes o céu e a terra, duas coisas: uma perto de vós, outra perto do nada, uma que só a Vós tem como Superior, outra que nada tem inferior a ela”.