quarta-feira, 7 de novembro de 2012

John Wycliffe

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John Wycliffe nasceu na terra natal de Occam, na Inglaterra, aproximadamente na mesma data em que o exilado excomungado morreu de peste em Munique. Embora chegassem a muitas conclusões idênticas no tocante à igreja, Wycliffe e Occam divergiam grandemente nas abordagens básicas da filosofia e da teologia. Wycliffe era realista em relação às proposições universais, mas acreditava, assim como Occam, que o papa era corrupto e que a igreja deveria ser governada pelo povo de Deus com seus respectivos representantes e não pela estrutura hierárquica clerical.

Wycliffe nasceu por volta de 1330 em Lutterworth, no condado de Yorkshire, na Inglaterra. Morreu ali em 1384 como pároco, depois de ter sido afastado da Universidade de Oxford pelos seus colegas e pelos líderes eclesiásticos, devido aos seus ensinos radicais. Ainda jovem, Wycliffe tornou-se mestre no Balliol College da Universidade de Oxford, alcançou rapidamente posição de destaque e adquiriu grande reputação como erudito e forte defensor de reformas na igreja. 

Enquanto dava aulas em Oxford, assim como muitos outros catedráticos, Wycliffe era funcionário do rei da Inglaterra de quem recebia proteção contanto que suas opiniões concordassem com as da realeza. Serviu de mediador entre a igreja e a corte real nas disputas a respeito dos bens imóveis da igreja, impostos e de outras questões conflitantes entre a igreja e o estado e escreveu dois grandes livros sobre a teoria governamental: On divine lordship [Do senhorio divino] e On civil lordship [Do senhorio civil]. Escreveu, também, On the king's office [Do papel do rei], On the truth of the Holy Scriptures [Da veracidade das Sagradas Escrituras], On the church [Da igreja], On the power of the pope [Do poder do papa], On the eucharist [Da eucaristia] e On the pastoral office [Sobre o cargo pastoral]. Defendia a tradução da Bíblia inteira para a linguagem do povo para que todos os cristãos pudessem lê-la e estudá-la por conta própria. Graças a isso, é lembrado no nome da maior sociedade de tradução bíblica do mundo.

Wycliffe não era nada diplomático ou flexível em questões que envolviam suas fortes convicções. Censurava a corrupção e abusos dentro da igreja e condenava duramente os papas de sua época por causa da secularidade e obsessão pelo poder e dinheiro. Um exemplo de sua invectiva contra o papa oferece uma amostra de sua inclinação à polêmica: “Portanto, o papa corrupto é anticristão e maligno, por ser a própria falsidade e o pai das mentiras”. Chamou os ubíquos frades de seu país de “adúlteros da Palavra de Deus, que usam as vestes e véus coloridos das prostitutas”. Wycliffe antecipou os ataques de Lutero contra a corrupção da igreja de forma mais veemente em sua crítica às indulgências. As indulgências eram documentos de absolvição do castigo temporal (como o purgatório) dos pecados vendidos por agentes dos papas. Wycliffe condenou severamente essa prática, assim como Lutero o fez em seus dias. A respeito das críticas que o teólogo de Oxford fez contra a igreja, um biógrafo moderno de Wycliffe escreve: “Um ataque como esse foi necessariamente o prelúdio para a Reforma e uma contribuição importante de Wycliffe. De fato, pode-se dizer que o ataque de Wycliffe foi tão direto, tão devastador que poupou os reformadores do século XVI o trabalho de realizar a tarefa sozinhos”.

Em 1377, dezoito “erros” de Wycliffe foram condenados pelo papa a pedido de alguns de seus colegas em Oxford. Ele foi intimado a comparecer diante dos bispos da Inglaterra para se defender. Nessa ocasião, conseguiu evitar a confrontação apenas porque a rainha-mãe o defendeu firmemente. Em 1378, Wycliffe começou a criticar o Grande Cisma do Ocidente, no qual dois homens e, posteriormente, três alegavam ser papas. Suas críticas, no entanto, não se restringiram ao papado. Elas se estenderam às doutrinas católicas essenciais como a transubstanciação, que se tornou dogma semi-oficial da igreja no tocante à eucaristia no Quarto Concílio Laterano em 1215. A família real apoiou e protegeu Wycliffe até 1381, quando ele simpatizou abertamente com a revolta dos camponeses. Sofrendo grandes pressões do corpo docente de Oxford e dos bispos da Inglaterra, Wycliffe voltou à sua paróquia natal em Lutterworth, onde passou o resto de seus dias escrevendo e organizando uma sociedade de pregadores leigos pobres, conhecidos como lollardos. Morreu de derrame enquanto conduzia o culto no último dia de 1384 e foi condenado como herege e oficialmente excomungado pelo Concílio de Constança em 1415; ali também foi queimado na fogueira seu dovoto seguidor boêmio, John Huss. Os restos mortais de Wycliffe foram exumados, queimados e jogados no rio Swift pelo bispo de Lincoln em 1428.

Diferentemente de Occam, Wycliffe era um ardoroso realista no tocante às proposições universais. Nessa questão, assim como também em muitas outras, ele recorreu à tradição cristã platônica da igreja primitiva e de Agostinho e se posicionou com Anselmo. Empregava a lógica escolástica, mas dava pouco valor ao aristotelismo de Aquino e ao nominalismo de Occam. O realismo de Wycliffe manifestou-se em várias áreas da sua teologia, mas em nenhum outro lugar com tanta força quanto em sua crítica à doutrina da transubstanciação. Segundo ela, quando o sacerdote pronuncia as palavras da consagração na celebração da missa, o pão muda de substância e torna-se verdadeira e fisicamente a carne de Jesus Cristo enquanto o vinho torna-se de fato seu sangue. Os “acidentes” ou qualidades exteriores do pão e do vinho permanecem os mesmos, mas a substância interior é transformada de tal maneira que, segundo a doutrina, a pessoa que participa da eucaristia realmente come e bebe o corpo e sangue de Cristo. Embora essa doutrina da eucaristia não tenha se tornado um dogma definitivo e formal – já não mais passível de debate – antes do Concílio de Trento no século XVI, ainda na época de Wycliffe chegou a ser crença e doutrina aceita pela Igreja Católica Romana. Wycliffe lutou com ferocidade contra essa doutrina e usou o realismo como aliado.

Na obra On the eucharist, Wycliffe levantou muitas objeções contra a doutrina da transubstanciação e até mesmo a rotulou de “fantasias infiéis e infundadas” e argumentou que ela levava à adoração idólatra dos alimentos. Mas seu argumento mais forte baseava-se na metafísica realista. A referida doutrina subentende que uma substância, como o pão e o vinho, pode ser destruída e que “acidentes” podem existir sem que haja nenhuma relação com a substância. Segundo Wycliffe, essa crença desonra a Deus que é o autor de todas as substâncias. Além disso, viola as regras básicas da metafísica e da lógica. Em qualquer metafísica realista, quando uma substância ou proposição universal é destruída, seus acidentes também são destruídos. Pelo menos, assim ele acreditava e argumentava.

De qualquer forma, Wycliffe apresentou seu próprio conceito da eucaristia como alternativa ao que chamava de “heresia moderna” da transubstanciação. Segundo seu conceito, as substâncias do pão e do vinho permanecem enquanto o Espírito do Deus vivo estiver nelas, de modo que contêm a “presença real” de Jesus Cristo, embora continuem sendo pão e vinho. Em suas próprias palavras: “Assim como Cristo é duas substâncias, a saber, terrena e divina, também esse sacramento é o corpo do pão material e o corpo de Cristo”. Wycliffe rejeitava a ideia de que qualquer sacramento funcionasse ex opere operato. Nessa questão, rompeu com seu amado pai da igreja, Agostinho, e insistiu que, para que o sacramento fosse verdadeiro e transmitisse graça, devia existir a presença da fé. A visão de Wycliffe sobre os sacramentos – especialmente da refeição eucarística – foi prenúncio do pensamento dos grandes reformadores protestantes magisteriais: Lutero e Calvino. Sua doutrina da presença real de Cristo por meio do Espírito Santo antecipa, sobretudo, a de Calvino.

A rejeição de Wycliffe à doutrina e à prática católica romana medieval ia muito além da crítica à transubstanciação. Seus conceitos sobre ministério e autoridade foram ainda mais importantes para sua luta por reforma. O teólogo de Oxford argumentava que a responsabilidade básica do ministro cristão – o sacerdote – era proclamar o evangelho e esse dever sobrepujava todos os demais. “Pregar o evangelho é infinitamente mais importante do que orar e administrar os sacramentos. […] Difundir o evangelho produz um benefício maior e mais evidente; é, por isso, a atividade mais preciosa da igreja. […] Portanto, os que pregam o evangelho devem realmente ser consagrados pela autoridade do Senhor”.

Como eles deviam ser escolhidos e consagrados? Wycliffe chegou a recomendar que os membros de cada paróquia escolhessem seu próprio sacerdote – uma ideia bastante radical para a época. Ele estava profundamente desiludido com o poder, as riquezas, a corrupção e os abusos de autoridade por parte dos líderes da igreja e voltou sua atenção para o povo de Deus como a voz da vontade de Deus no governo eclesiástico. Embora fosse realista, sua eclesiologia converge, em certos aspectos, para a de Occam. Assim como o nominalista de Munique, Wycliffe defendia reformas radicais do clero e até a abolição do papado em qualquer forma reconhecível.

Talvez o principal trabalho de Wycliffe na teologia tenha sido sua defesa da autoridade suprema das Escrituras para tudo que tem relação com a fé e a vida. A Igreja Católica medieval chegou a considerar que a tradição tinha a mesma autoridade das Escrituras. A palavra do papa era considerada, por muitos sacerdotes e bispos, a palavra de Deus, embora a teologia católica não exigisse necessariamente essa crença. O dogma da infalibilidade papal só foi promulgado oficialmente no século XIX, mas na prática, as palavras e ações dos papas medievais eram respeitadas como autoridade absoluta. Wycliffe rejeitava totalmente essa ideia e depois de 1380 começou a chamar os papas de anticristos. Até o papa precisava obedecer ao “padrão evangélico” de ensino e prática derivado inteiramente das Escrituras e, à medida que o papa deixava de ser verdadeiramente evangélico, deixava mesmo de fazer parte da verdadeira igreja de Jesus Cristo e não devia ser considerado seu senhorio temporal ou espiritual

Wycliffe escreveu o tratado chamado De veritae Sacrae Scripturae [Da veracidade das Sagradas Escrituras] em 1378, ano em que começou o Grande Cisma Ocidental. Nele, apresentou a tese de que as “Sagradas Escrituras são a suprema autoridade para todo o cristão e o padrão de fé e de toda a perfeição humana”. Afirmou, também, a infalibilidade das Escrituras, que se interpretavam a si mesmas e o papel do Espírito Santo em iluminar a mente dos leitores enquanto as lêem e estudam. Em outras palavras, assim como os principais Reformadores protestantes de tempos posteriores, Wycliffe rejeitava a necessidade do magisterium autorizado – o ofício da igreja no ensino e interpretação das Escrituras. A Bíblia, a Palavra inspirada de Deus, assume esse ofício e está acima de todas as agências eclesiásticas.

Wycliffe rejeitava, também, o sistema medieval penitencial da salvação. Nos séculos subsequentes a Gregório Magno, a igreja ocidental e, especialmente, os monges desenvolveram um sistema meticuloso e exigente de penitências, ou atos de contrição, que os cristãos tinham que seguir para conquistar mérito perante Deus. Embora Wycliffe não chegasse a aceitar plenamente o evangelho protestante da justificação unicamente pela graça, antecipou Lutero e Calvino e outros reformadores do século XVI ao condenar todas as práticas humanas que visavam conquistar méritos diante de Deus. Sem nunca criticar ou abandonar as genuínas obras de amor como parte integrante da vida cristã, Wycliffe atribuía todo o mérito somente a Cristo e enfatizava a graça e a fé de maneira que não se ouviu falar na igreja durante séculos. Além disso, endossava com firmeza a crença na predestinação e tendia ao monergismo no seu conceito da intervenção de Deus em relação à atuação humana. Baseava-se nas Escrituras e não na metafísica escolástica ou na teologia natural.

Muitas razões justificam a reputação de Wycliffe como precursor da Reforma protestante. Nenhuma delas é mais importante, entretanto, do que a sua ênfase à Bíblia como infinitamente superior, em veracidade e autoridade, a qualquer tradição ou ofício humano. “Cento e cinquenta anos antes daqueles tempo [da Reforma protestante], Wycliffe agarrou-se à única autoridade adequada à Reforma, concedeu-lhe posição de destaque em sua obra e não poupou esforços para torná-la conhecida pelo povo, graças à tradução e à insistência na pregação da Palavra”.

Nos anos finais, em Lutterworth, organizou o grupo de evangelistas e pregadores leigos, posteriormente chamados de lollardos, que ajudaram a preparar a Reforma na Inglaterra. Além disso, lutou pela tradução da Bíblia para a língua inglesa e seus esforços produziram entre seus seguidores a primeira Bíblia em inglês, chamada Bíblia de Oxford. Seus livros e ensinos chegaram à cidade de Praga, na Boêmia, onde o grande pregador e reformador John Huss usou-os para estabelecer ali um movimento permanente pré-protestante. Posteriormente, Lutero aproveitou os trabalhos tanto de Hus quanto de Wycliffe em sua luta bem-sucedida para reformar a teologia e a vida eclesiástica na Europa.


Extraído de: Cristãos na História