A Conversão de Calvino
A transição de Calvino de humanista a reformador foi marcada pelo que ele certa vez escreveu como uma “conversão súbita” (conversio subita). Contudo, tem sido notoriamente difícil para os estudiosos de Calvino concordar acerca de uma data provável para essa mudança. As suposições vão de 1527 a 1534. Há diversos motivos para essa dificuldade. Em primeiro lugar, Calvino era reticente quanto a si mesmo. Em parte, isso acontecia por causa de sua tendência natural à timidez e à introspecção e, em parte, porque levou a sério a admoestação de Paulo: “Porque não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor ...” (2 Co 4.5). A glória pertencia a Deus, não a João Calvino.
Além disso, embora a conversão possa ter sido “súbita”, ele preparou-se para ela com um período de lutas, inquietações e dúvidas. Calvino, não menos que Lutero e Zuínglio, teve uma formação católica tradicional e deve ter conhecido a sensação de ansiedade e opressão que caracterizava a cultura da baixa Idade Média. Certa vez, quando ainda bem novo, fez uma peregrinação com sua mãe para a Abadia de Ourscamp, onde foi-lhe permitido beijar uma relíquia sagrada, o dedo de S. Ana. Mais tarde, Calvino apresentou um quadro vívido do tipo de pregação que ele com freqüência deve ter ouvido, com o propósito, ao que parece, de produzir uma espiritualidade de culpa:
Diziam-nos que éramos pecadores miseráveis dependentes da sua misericórdia; a reconciliação viria mediante retidão das obras. O método para obter tua misericórdia era a compensação dos delitos. Então, porque eras juiz rigoroso e vingador severo da iniqüidade, mostravam quão terrível tua presença deve ser. Daí, eles nos mandavam buscar refúgio primeiro nos santos, para que por essa intercessão pudesses ser mais facilmente solicitado e propício a nós.15
Como Calvino teve seu primeiro contato com as idéias evangélicas, isso não podemos ter certeza. Alguns escritos de Lutero foram traduzidos para o francês logo no início da década de 20, e Calvino pode muito bem os ter lido. Ele também tinha íntima ligação com o círculo dos humanistas evangélicos franceses, inspirados pelo grande erudito Jacques Lefèvre d’Etaples. Alguns desses, e até seu futuro colaborador Guillaume Farel, haviam tentado uma reforma experimental da igreja na diocese de Meaux, perto de Paris, até serem impedidos pelas forças mais poderosas da ortodoxia. Beza e Colladon, os primeiros biógrafos de Calvino, atribuíram um papel significativo em sua conversão a seu primo Robert Olivétan, em cujo Novo Testamento Francês (1535) Calvino escreveu um prefácio intitulado “A todos os que amam a Jesus Cristo e a seu evangelho”. Esse foi seu primeiro trabalho publicado como protestante. De um fato podemos estar certos: Calvino não abraçou o novo evangelho de maneira rápida ou fácil.
Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita má vontade e, no início, confesso, resisti com energia e irritação; porque (tal é a firmeza ou descaramento com os quais é natural aos homens persistir no caminho que outrora tomaram) foi com a maior dificuldade que fui induzido a confessar que, por toda minha vida, eu estivera na ignorância e no erro.16
Em 1555, 20 anos depois do ocorrido, Calvino recordou sua conversão e escreveu sobre ela no prefácio de seu Comentário sobre os Salmos. Visto ser a mais explícita referência de Calvino a esse fato crucial, vamos citá-la aqui por inteiro:
Minha mente, que a despeito da minha juventude, estivera por demais empedernida em tais assuntos, agora estava preparada para uma atenção séria. Por uma súbita conversão, Deus transformou-a e trouxe-a à docilidade. Tendo, portanto, recebido um pouco de experiência e conhecimento da verdadeira piedade, fui repentinamente inflamado com tamanho desejo de prosseguir, que, mesmo abandonando os outros estudos completamente, ainda assim dediquei-me a eles mais negligentemente. Mas fiquei completamente maravilhado porque, antes que um ano se passasse, todos os que ansiavam pela pura doutrina vinham vez após outra até mim para aprendê-la. Mesmo eu tendo mal começado a estudá-la.
De minha parte, tendo uma natureza um tanto indelicada e retraída, sempre desejava paz e tranqüilidade. Então comecei a procurar algum esconderijo e uma forma de afastar-me das pessoas. Mas, longe de atingirem o desejo de meu coração, todos os retiros e lugares de escape tornaram-se como que escolas públicas para mim. Em resumo, apesar de sempre acalentar o objetivo de viver na privacidade, incógnito, Deus levou-me de tal forma que me fez mudar de tais maneiras diversas, que nunca me deixou em paz em lugar algum, até que, a despeito de minha disposição natural, colocou-me no centro das atenções. Deixando minha França natal, parti para a Alemanha com o expresso propósito de poder viver em paz em algum canto desconhecido, como sempre desejei.17
Três importantes tendências da piedade e da personalidade de Calvino são evidentes nessa recordação reveladora: Em primeiro lugar, via sua conversão como o resultado da iniciativa divina: “Deus mudou meu coração”. Talvez fosse essa a verdadeira intenção por trás da sua descrição da mudança como “repentina” – não tendo uma ocorrência rápida como um relâmpago (embora possa ter sido assim, também), quando uma sensação de ser completamente dominado pela graça de Deus. Calvino não tinha ilusões de que poderia ter conseguido uma relação adequada com Deus sem uma prévia “mudança” da parte de Deus. “Eu permanecia tão obstinadamente entregue às superstições do papado, que teria sido muito difícil arrancar-me de tão profundo lamaçal”, ele observou.18 “Eu não fiz nada, a Palavra fez tudo”. A experiência de Calvino ecoava a de Lutero.
Aqui, também, estão as raízes experimentais da tão discutida doutrina da predestinação. Como veremos, a visão de Calvino sobre a eleição só pode ser entendida no contexto de uma apropriação particular da salvação por meio de Jesus Cristo.
Um segundo tema no enfoque de Calvino à fé surge do comentário de que Deus sujeitou seu coração à docilidade. Essa palavra, docilitas, poderia também ser traduzida por educabilidade. Há um sentido em que Calvino aspirava a ser nada mais do que um discípulo fiel de Jesus Cristo, discípulo em seu significado etimológico (do latim disco, aprender) de aprendiz, alguém que é capaz de ser ensinado. Esse tema ressoa ao longo de seus escritos sobre a vida cristã. Para Calvino, a verdadeira piedade não consistia num medo servil de um Deus todo-poderoso, mas sim “num sentimento sincero que ama a Deus como Pai, tanto quanto o reverencia como Senhor”. A evidência de tal piedade era precisamente uma disposição para tornar-se dócil, educável diante do verdadeiro Deus. “Quem quer que tenha sido dotado dessa piedade não ousa modelar de sua própria imprudência qualquer deus para si mesmo. Antes, busca para si mesmo o conhecimento do Deus verdadeiro, e concebe-o apenas como ele se mostra e declara ser”.19 Significativamente, essa definição deriva do Catecismo apresentado por Calvino em 1537, um documento destinado à instrução de crianças na fé. Mais tarde, em seu Comentário de Atos (18.22), ele disse que não pode haver nenhuma pietas sem uma instrução verdadeira, como o nome discípulos indica. “A religião verdadeira e a adoração de Deus”, ele dizia, “provém da fé, de modo que ninguém serve devidamente a Deus senão aquele que foi educado em sua escola”.20
Ao longo de toda a descrição de sua conversão, Calvino declarou sua natureza tímida e retraída, o desejo de viver em reclusão para estudos, “em paz em algum canto desconhecido”. Não compreenderemos a pessoa de Calvino se não levarmos em conta essa reticência, essa relutância genuína em entrar na frente de batalha. Nesse sentido, ele diferia dos outros dois grandes reformadores que já examinamos. Lutero foi feito para o papel, um verdadeiro vulcão de personalidade explodindo em Worms: “Aqui permaneço!”. Zuínglio também foi uma pessoa de ação; afinal, ele morreu em batalha brandindo a espada de dois gumes! Mas Calvino era diferente. Tímido a ponto de ser insociável, ele não se sairia bem numa conversa fiada numa festa moderna. Ele teve que ser puxado, esperneando e gritando, por assim dizer, para as fileiras dos reformadores. Contudo, o mesmo Deus que submetera seu coração à educabilidade também firmou seus nervos para as importantíssimas tarefas que estavam diante dele.
15 Tracts and Treatises, I, p. 62; OS 1, PP. 484-485.
16 Tracts and Treatises, I, p. 62; OS 1, p. 485.
17 Essa é uma tradução feita por Ford L. Battles, impressa na introdução de sua tradução da Instituição da Religião Cristã de 1536 – Institution of the Christian Religion (Atlanta: John Knox Press, 1975), pp. xxiii-xxiv. A tradução de Battles foi reimpressa por Eerdmans (1986) como Institutes of the Christian Religion: 1536 Edition. AS citações subseqüentes serão dessa última impressão.
18 CO 31, col. 22: “Ad primo quidem, quum superstionibus papatus, magis pertinaciter addictus essem, quam ut facile esset e tam profundo luto me extrahi, animum meum, qui pro aetate nimis obduruerat subita conversione and docilitatem subegit”. Em seu comentário sobre De Clementia, de Sêneca, Calvino observou que “subita significa não apenas ‘súbito’, mas também ‘não-premeditado’”. Cf. Battles e Hugo, Commentary on De Clementia, pp. 56s.
19 OS 1, p. 379. Cf. Instruction in Faith (Filadelfia: Westminster Press, 1949), p. 19.
20 CO 32, col. 249; CNTC 7, p. 142. Veja Ford L. Battles, The Piety of John Calvin (Grand Rapids: Baker Book House, 1978), pp. 13-26.