quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A reforma da igreja (por Franklin Ferreira)

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A época em que os reformadores viveram foi de grande inquietação. Foi o tempo do descobrimento das Américas; imperadores, reis, generais e papas lutavam entre si, para tentar moldar a Europa moderna; a Igreja Católica detinha a supremacia espiritual, cultural e política, e as tentativas de reforma, como as de John Wycliffe (1328-1384) e Jan Huss (1373-1415) foram esmagadas. Surgiram gênios como Erasmo, Miguelângelo, Da Vinci, Rafael, Colombo, Copérnico. Mas o fim da Idade Média foi marcado por uma inquietação profunda com a morte, culpa e perda de sentido. A teologia de Lutero, Zuínglio, Calvino e dos demais reformadores foi uma resposta específica às ansiedades desta época. O estudo da Reforma é divido em duas partes: a “reforma magistral” (que aconteceu com o apoio do Estado) e a “reforma radical” (que aconteceu sem o apoio do Estado, e muitas vezes, perseguido por este).

1. A “reforma magistral”


a) Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, na Alemanha, na vila de Eisleben. Aos 18 anos, em 1501, seu pai, desejando torná-lo advogado, o enviou para a Universidade de Erfurt. Mas uma convulsão assaltava o jovem Lutero – ele tinha uma percepção de toda a miséria de seu coração. Contra a ira de Deus, Lutero pateticamente buscava refúgio junto à Virgem e aos santos. O fato decisivo que o levou, aos 22 anos, a ingressar, em 1505, no convento dos Cônegos Agostinianos foi o medo da morte, por causa de uma violenta tempestade que desabou perto dele, quando retornava de sua casa para a Universidade. Por causa de seus pecados, mesmo no mosteiro, tinha um espírito quebrantado e estava sempre triste.

A partir do inverno de 1512, Lutero começou a pregar em Salmos (1513-1515), Romanos (1515-1516), Gálatas (1516-1517), Hebreus (1517) e novamente Salmos (1518-1519). Através de seus estudos das Escrituras, Lutero chegou a ver que a culpa que o consumia não poderia ser retirada por mais religião, e o Deus que ele tanto temia não era o Deus que Cristo havia revelado. Disparado da Epístola aos Romanos (1.17), outro relâmpago cruzou seu caminho: “Noite e dia eu ponderei até que vi a conexão entre a justiça de Deus e a afirmação de que ‘o justo viverá pela fé’. Então eu compreendi que a justiça de Deus era aquela pela qual, pela graça e pura misericórdia, Deus nos justifica através da fé. Com base nisto eu senti estar renascido e ter passado através de portas abertas para dentro do paraíso. Toda a Escritura teve um novo significado e, se antes, a justiça me enchia de ódio, agora ela se tornou para mim inexprimivelmente doce em um maior amor. Esta passagem de Paulo se tornou para mim um portão para o céu…” Ele desvencilhou-se da idéia medieval de que o homem faz-se justo. Lutero entendeu, seguindo o apóstolo Paulo nas epístolas de Romanos e Gálatas, que Deus nos declara justos, baseado na perfeita obediência de Cristo, colocada em nossa conta. Lutero disse que a doutrina da justificação pela graça, por meio da fé, é “o artigo pelo qual a igreja se mantém ou cai”.

Lutero, além de professor em Bíblia, era o pastor da igreja da cidade de Wittemberg, e começou a pregar sua fé recém-descoberta para a congregação. Mas, ao mesmo tempo, um monge chamado Johann Tetzel, representante do papa Leão X, estava vendendo indulgências. O monge afirmava: “Não vale a pena atormentar-te: podes resgatar teus pecados com dinheiro! Pagando, podes escapar dos sofrimentos do purgatório e aliviar os dos outros!”, e tudo embalado pelo cântico: “Quando uma moeda no fundo do cofre cai, a alma direto para o céu vai.” Para Lutero, isto era uma perversão do Evangelho! Em 31 de outubro de 1517 ele afixou, na porta da Igreja do Castelo, em Wittemberg, as 95 teses que haveriam de marcar o princípio da Reforma. Elas começam com a famosa exortação: “Ao dizer ‘Arrependei-vos’ [ Mt 4.17] , nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência”.

Os eventos se sucederam com rapidez. Em 1518, Frederico, Eleitor da Saxônia, deu seu apoio a Lutero. Em 1519, participou do debate de Leipzig. Em 10 de dezembro de 1520, queimou os livros de “Direito Canônico” e a bula papal que o ameaçava de excomunhão. Em começos de 1521, ele foi convocado a Worms, perante o Imperador Carlos V e os príncipes da Alemanha, para dar contas de seu ensino. Depois de dois dias de debates, onde o que estava em jogo era a autoridade das Escrituras, ao ser instado a retratar-se e retornar à comunhão com Roma, Lutero exclamou: “Já que me pede uma resposta simples, darei uma que não deixa margem a dúvidas: A não ser que alguém me convença pelo testemunho da Escritura Sagrada ou com razões decisivas, não posso retratar-me. Pois não creio nem na infalibilidade do papa, nem na dos concílios, porque é manifesto que freqüentemente se tem equivocado e contradito. Fui vencido pelos argumentos bíblicos que acabo de citar e minha consciência está presa na Palavra de Deus. Não posso e não quero revogar, porque é perigoso e não é certo agir contra sua própria consciência. Que Deus me ajude. Amém.” Era a noite de 18 de abril de 1521, e um novo dia raiou para a cristandade.

Em 1529, os príncipes católicos reuniram-se em torno de uma resolução que impedia a introdução da Reforma em seus territórios, mas reclamavam liberdade de culto romano nos territórios conquistados pela Reforma. A recusa solene dos príncipes de “fé evangélica” (como se chamavam) de concordar com esta imposição tornou-os conhecidos como “protestantes”. Até sua morte, com 62 anos, em 18 de fevereiro de 1546, na vila onde nasceu, em Eisleben, Lutero esteve continuamente envolvido nas controvérsias de seu tempo. Por esta época, sua influência já se havia espalhado não só pela Alemanha, mas também por partes da Holanda, Suécia, Dinamarca e Noruega. Foi sucedido por seu amigo Filipe Melanchthon (1497-1560).

b) Ulrico Zuínglio nasceu em Wildhaus, uma pequena aldeia nos Alpes da Suíça de língua alemã, dois meses depois do nascimento de Lutero, em 1º de janeiro de 1484. A reforma na Suíça não seria um resultado direto da obra de Lutero, mas sim uma reforma paralela à da Alemanha. Houve pontos de contato, mas a origem foi independente. Em 1506, Zuínglio recebeu seu título de Mestre em Artes, foi ordenado sacerdote, e serviu na paróquia de Glarus. Lá ele continuou seus estudos, chegando a dominar o grego, sendo um feito extraordinário, pois havia muitos sacerdotes que nunca tinham lido o Novo Testamento! Diz-se que Zuínglio chegou a decorar todas as epístolas paulinas – em grego! Em cerca de 1516, depois de estudos diligentes no NT, Zuínglio foi despertado para a fé evangélica. Esse acontecimento levou Zuínglio a voltar-se para as Escrituras com fervor ainda mais sincero. Zuínglio também passou a sentir hostilidade contra o sistema medieval de penitências e relíquias (como a imagem negra da Virgem Maria), que atacou em 1518. Logo depois, em 1519, Zuínglio foi chamado para ser o sacerdote da Grande Catedral da cidade de Zurique, onde ficou até o fim da vida. Sobre o portal dessa igreja, pode-se ler a seguinte inscrição: “A reforma de Ulrico Zuínglio começou aqui, em 1º de janeiro de 1519?. Um dos grandes momentos da Reforma ocorreu no início daquele ano, quando Zuínglio começou o culto com a proclamação da sua intenção de pregar sermões expositivos, capítulo por capítulo, começando no Evangelho de Mateus. Esta série de sermões foi seguida por preleções em Atos, em 1 e 2 Timóteo, Gálatas, 1 e 2 Pedro, até que em 1525, já havia pregado em todo o NT (menos Apocalipse), daí voltando-se para o Antigo. Segundo seu amigo e sucessor Henrique Bullinger (1504-1575), ele recusava-se “a cortar em pequenos pedaços o evangelho do Senhor”! Ao permitir que a Bíblia falasse diretamente à sua congregação, Zuínglio presenciou uma ávida corrida de seus paroquianos para escutá-lo, enchendo a Catedral.

Neste ínterim, instigadas pelo papa, as regiões católicas da Suíça se organizaram, e em 1531 realizaram um ataque de surpresa contra a cidade de Zurique. Zuínglio perdeu a vida enquanto servia como capelão das tropas de Zurique, na batalha de Kappel, e suas últimas palavras foram: “Vocês podem matar o corpo, mas não podem matar a alma”. Em 1523, Zuínglio havia dito: “Não tenham medo, meus amigos! Deus está do nosso lado, e protegerá os que são seus. Vocês de fato realizaram algo grandioso e encontrarão oposição por causa da pura Palavra de Deus, sobre a qual apenas alguns se importam de pensar. Vão em frente, em nome de Deus!”

c) João Calvino nasceu em Noyon, na França, na fronteira dos Países Baixos, em 1509. Foi enviado para estudar teologia em Paris, mas seu pai, após brigar com os líderes da igreja, mandou o filho para estudar filosofia e direito. Em 1533, Calvino converteu-se, e a respeito deste fato disse: “minha mente, que a despeito de minha juventude, estivera por demais empedernida em tais assuntos, agora estava preparada para uma atenção séria. Por uma súbita conversão, Deus transformou-a e trouxe-a a docilidade”. Em 1535, ele precisou fugir de Paris, por suas convicções protestantes, exilando-se em Basiléia. Em 1536, ao passar por Genebra, Calvino foi coagido a iniciar um trabalho ali, mas em 1538 foi expulso da cidade, pelo rigor das reformas que propôs. De 1538 a 1541, ele mudou-se para Estrasburgo, onde pastoreou a igreja de refugiados franceses naquela cidade. Lá, Calvino travou contato com Martim Bucer (1491-1551), que influenciou profundamente sua teologia, principalmente acerca da doutrina do Espírito Santo e da disciplina eclesiástica.

Em 1541, em virtude do caos moral, social e espiritual de Genebra, Calvino foi convidado a retornar a essa cidade, onde, depois de grandes lutas, conseguiu implementar seu programa de reformas, mudando completamente toda a Genebra, tornando-a um exemplo para toda a cristandade. O reformador escocês, John Knox (1514?-1572), disse que Genebra era “a mais perfeita escola de Cristo que jamais houve na terra desde a época dos apóstolos”. Em 1564 Calvino morreu, e suas últimas palavras foram: “É suficiente para mim viver e morrer para Cristo, que é, para todos os seus seguidores, um ganho tanto na vida quanto na morte.” Devido a seu próprio pedido, não se ergueu lápide alguma sobre o lugar de sua sepultura. Foi sucedido por Teodore de Beza (1519-1605), também um refugiado francês. 0

Sua maior obra foi, sem dúvida, as Institutas ou Instrução da Religião Cristã, que era “uma chave abrindo caminho para todos os filhos de Deus num entendimento bom e correto das Escrituras Sagradas”. Na edição final de 1559, ela alcançou 1500 páginas! Uma olhada no esboço desta obra nos mostra um resumo de sua teologia, que seguia o padrão do Credo dos Apóstolos. Volume 1: “O conhecimento de Deus, o Criador” – o conhecimento de Deus, Escrituras, Trindade, criação e providência; volume 2: “O conhecimento de Deus, o Redentor” – a queda, o pecado humano, a lei, o AT e o NT, Cristo, o mediador, sua pessoa (profeta, sacerdote e rei) e obra (expiação); volume 3: “O modo pelo qual recebemos a graça de Cristo, seus benefícios e efeitos” – fé e regeneração, arrependimento, vida cristã, justificação, oração, predestinação e ressurreição final; volume 4: “Os meios externos pelos quais Deus convida-nos à sociedade de Cristo” – Igreja, sacramentos e governo civil. Esta foi a primeira “teologia bíblica” da história da Igreja, e, na verdade, uma introdução que precisava ser completada e até mesmo estendida por seus outros escritos! Eles são divididos em comentários bíblicos (sobre todo o NT, exceto 2 e 3João e Apocalipse, e também sobre o Pentateuco, Salmos e Isaías, do AT), sermões (pregava duas vezes ao domingo e uma vez por dia durante a semana, em dias alternados, usando o método expositivo), folhetos e tratados polêmicos contra reformadores radicais, católicos, cartas para colegas reformadores, a igrejas perseguidas e a protestantes presos, a pastores, vendedores de livros religiosos e mártires à espera da sentença e escritos litúrgicos e catequéticos, para instruir o povo na “escola de fé”.

A influência de Calvino se estendeu a vários países, tais como Suíça, França, Holanda, Alemanha, Hungria, Polônia, Inglaterra, Escócia e Estados Unidos. Foram os reformados franceses que realizaram o primeiro culto evangélico em terras brasileiras (em 10 de março de 1557), e foram os reformados holandeses que construíram o primeiro templo protestante no Brasil (construído na Ilha Maurício, no ano de 1642, em forma da cruz grega, chamado de Templo Gallicum. Depois da expulsão dos holandeses, foi consagrado pela Igreja Católica à “Nossa Senhora do Ó”; atualmente é dedicado ao “Divino Espírito Santo”).

2. A “reforma radical”


Houve quatro tipos de anabatistas: os racionalistas, que enfatizavam a razão (rejeitando doutrinas como a Trindade, as doutrinas ortodoxas da pessoa de Cristo, salvação pela graça etc.), escatológicos e espiritualistas, que enfatizavam uma iluminação espiritual mais importante que as Escrituras (liderados por João Matthys e João de Leyden, que estiveram envolvidos em uma sucessão de acontecimentos desastrosos, os quais culminaram na destruição da cidade de Münster, na Alemanha, de 1532 a 1536) e os evangélicos, que enfatizavam a autoridade das Escrituras e o discipulado (os menonitas são os herdeiros diretos deste grupo). Em 1523, os anabatistas começaram a se opor a Ulrich Zuínglio, por causa do batismo infantil, que era praticado por ele. Em 1525, Conrado Grebel e Jorge Blaurock foram rebatizados em Zurique. A principal ênfase do movimento anabatista era ter uma igreja só de regenerados, tendo como sinal o batismo só de crentes. Em 1536, Menno Simons reuniu-se aos anabatistas pacifistas da Holanda, liderados por Obbe e Dirk Philips, dando início ao movimento anabatista evangélico. Além de confessarem o Credo dos Apóstolos, suas doutrinas principais eram o batismo de adultos por aspersão (necessário para a salvação), a ênfase na regeneração como obra do Espírito Santo (mais do que na justificação, que às vezes era confundida com a regeneração), a igreja composta de crentes regenerados, sujeitos à disciplina eclesiástica que visava levá-los a ser discípulos e a separação radical entre Igreja e Estado – inclusive da cultura.

3. Reflexões


1. Segundo o teólogo reformado Karl Barth (1886-1968), luteranos e reformados enfatizaram quatro doutrinas principais: a autoridade e suficiência das Escrituras, o pecado original (nossa miséria diante de Deus), a justificação pela graça mediante a fé e a eleição livre e soberana de Deus (a prioridade de Deus na salvação). Do outro lado, os anabatistas evangélicos enfatizaram a igreja local composta só de regenerados e a separação de Igreja e Estado. Os três grupos enfatizaram a doutrina do sacerdócio de todos os crentes. Os luteranos e reformados enfatizando mais o aspecto da salvação (não precisamos de mediadores, Cristo é nosso único mediador!) e os anabatistas o aspecto eclesiástico (todos os crentes têm uma tarefa a desempenhar na Igreja). Estas doutrinas são a base da fé evangélica! Precisamos voltar a pregar e ensinar essas doutrinas, pois são elas que nos tornam evangélicos!

2. A Reforma seguiu seu curso de forma poderosa. Quem foram os reformadores? Eles não eram homens livres de falhas, muito pelo contrário! Às vezes estas eram mais evidentes que suas qualidades! Mas Barth, ao entender que o verdadeiro legado deles residia em sua percepção da livre graça de Deus em Cristo, que alcança o homem em seu estado de rebelião, morte e idolatria, afirmou a respeito de Lutero (mas se aplicando a todos eles!): “Que mais foi Lutero, além de um professor da Igreja Cristã que não se pode celebrar de outra maneira senão ouvindo-o?” Para aqueles que querem se aprofundar no estudo da teologia dos reformadores, recomendaria as Obras selecionadas de Martinho Lutero, em sete volumes (publicados pelas editoras Concórdia e Sinodal). Cada volume traz uma breve introdução e um pequeno comentário dos textos contidos na obra. Recomendaria também o Livro de Concórdia, uma coletânea das principais confissões de fé luteranas do período da Reforma (também publicada pelas editoras Concórdia e Sinodal). Sobre João Calvino, recomendaria As Institutas da Religião Cristã – um resumo (publicado pela PES). Vários de seus comentários estão saindo em português. Já foram publicados Salmos (em dois volumes), Daniel (em um volume), Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, As Pastorais e Hebreus (publicados pela editora Parácletos). A Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg, importantes documentos reformados do mesmo período, foram publicados pela editora Cultura Cristã.

3. Como disse o historiador batista Timothy George, nós faríamos “bem em ouvir novamente a mensagem desses cristãos corajosos que desafiaram imperadores e papas, reis e câmaras municipais, porque suas consciências estavam cativas à Palavra de Deus. Seu evangelho da graça livre do Deus todo-poderoso, o Senhor Deus dos Exércitos, conforme o grande hino de Lutero o expressa, e seu destaque à centralidade a ao caráter infalível de Jesus Cristo permanecem em acentuado contraste com as teologias enfraquecidas e demasiado transcendentais que dominam o cenário atual.” Jerônimo, um dos pais da Igreja, disse certa vez que, quando lia as cartas do apóstolo Paulo, podia ouvir trovões. Os mesmos trovões também ecoam nos escritos dos reformadores.

Fonte: A Igreja Cristã; da origem aos dias atuais (Rio de Janeiro: Vida Plena, 2000), pp. 43-48. Texto enviado a nós pelo próprio autor.
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* Franklin Ferreira é ministro da Convenção Batista Brasileira, doutorando em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, onde leciona Teologia Sistemática