“Após o Senhor vosso Deus andareis, e a ele temereis, e os seus mandamentos guardareis, e a sua voz ouvireis, e a ele servireis, e a ele vos achegareis. E aquele profeta ou sonhador de sonhos morrerá, pois falou rebeldia contra o Senhor vosso Deus, que vos tirou da terra do Egito, e vos resgatou da casa da servidão, para te apartar do caminho que te ordenou o Senhor teu Deus, para andares nele: assim tirarás o mal do meio de ti”.
(Deuteronômio 13:4-5)
Como os ministros de Satanás enganam os homens pela aparência exterior, quando se apresentam como sendo profetas de Deus, Moisés admoestou que os mestres não devem ser todos escutados indiscriminadamente, mas que os verdadeiros deveriam ser distinguidos dos falsos e que, tendo disso julgados, somente os que merecessem deveriam ser reconhecidos. Agora ele acrescentou o castigo daqueles que se introduzem com o título de profeta para conduzir o povo à rebelião. Ele não condena à pena capital aqueles que porventura espalham alguma falsa doutrina por conta de algum erro particular ou trivial, mas aqueles que são os autores da apostasia e que arrancam a religião pela raiz. Observe, também, que a ocasião para esta severidade não seria até que a religião fosse positivamente estabelecida e, portanto, a gravidade da impiedade é expressamente mencionada – aqueles que tentam desviar o povo do culto ao Deus verdadeiro. Além disso, para que todas as desculpas fossem anuladas, Moisés disse que quem Deus é e a maneira com que Ele deve ser cultuado era suficientemente manifesto pela maravilhosa benção da redenção deles e também pela doutrina da Lei. Portanto, para que Deus manifestasse que um castigo tão severo é justamente aplicado contra apóstatas, Ele declarou a certeza daquela religião que deveria existir entre os israelitas, de forma que nenhum perdão poderia ser concedido a um desprezo tão iníquo, pois Deus havia abundantemente provado a glória de Sua Divindade pelo milagre da redenção deles e havia revelado Sua vontade na Lei.
É preciso lembrar, então, que o crime da impiedade não deve ser castigado, a menos que a religião tenha sido recebida por consentimento público e sufrágio do povo e também sendo sustentada por provas seguras e incontestáveis, de forma que sua verdade seja posta acima do alcance da dúvida. Desta forma, apesar de ser absurda a severidade daqueles que defendem a superstição por meio da espada, homens profanos, pelos quais a religião é subvertida, de forma alguma podem ser tolerados em um governo político bem instituído. Aqueles que desejam ser livres para causar perturbações sem serem punidos não são capazes de tolerar isso e, portanto, chamam de sanguinários aqueles que ensinam que os erros pelos quais a religião é solapada e destruída devem ser reprimidos pela autoridade pública. Mas o que eles ganharão com seus desvarios públicos contra Deus? Deus ordena que os falsos profetas, que arrancam os fundamentos da religião e são os autores e líderes da rebelião, sejam mortos. Um patife ou outro contesta isso e se coloca contra o autor da vida e da morte. Que insolência é essa! Quanto ao que afirmam, que a verdade de Deus não precisa de um apoio assim, isto é muito verdadeiro. Mas qual é o sentido desta insanidade, de impor uma lei sobre Deus, de que Ele não pode fazer uso da obediência dos magistrados para este fim? Qual é o benefício de questionar a necessidade disso, se agrada tanto a Deus? Deus pode, de fato, dispensar o auxílio da espada na defesa da religião, mas esta não é Sua vontade. E por que isso causa surpresa, que Deus ordena que os magistrados sejam vingadores de Sua glória, se Ele não deseja nem tolera que roubos, fornicações e bebedeiras sejam isentos de castigo? Em ofensas menores, não é lícito que os juízes hesitem, mas quando o culto a Deus e toda religião é violada, tamanho crime será encorajado pela dissimulação? Pena capital será decretada contra adúlteros, mas os odiadores de Deus terão autorização para adulterar a salvação sem impunidade, para desviar almas miseráveis da fé? O perdão nunca será concedido para aqueles que envenenam as pessoas, pelo qual somente o corpo sofre danos, mas não há problemas em entregar as almas à eterna destruição? Finalmente, se a autoridade do próprio magistrado for atacada, haverá vingança por isso, mas tolerará que o santo nome de Deus seja profanado? O que pode ser mais monstruoso!? Mas será supérfluo contestar com qualquer argumento quando o próprio Deus já pronunciou qual é Sua vontade, pois nós temos que observar seu inviolável decreto.
Mas é questionado se esta lei pertence ao Reino de Cristo, que é espiritual e distinto de todo reino terreno; e há alguns homens que não são mal-intencionados e que entendem que nossa condição sob o Evangelho é diferente daquele do antigo povo de baixo da Lei, não somente porque o Reino de Cristo não é deste mundo, mas porque Cristo não quis que o princípio de Seu Reino fosse auxiliado pela espada. Mas, quando juízes humanos consagram seu trabalho ao incentivo do Reino de Cristo, eu nego que, por conta disso, sua natureza seja mudada. Pois ainda que fosse da vontade de Cristo que Seu Evangelho fosse proclamado por Seus discípulos em oposição ao poder do mundo inteiro (e Ele os desmascarou armado com a Palavra somente, como ovelha no meio de lobos), Ele não impôs em Si mesmo uma lei eterna de que Ele nunca faria os reis se sujeitarem a Ele, que Ele nunca domaria a violência deles ou que Ele nunca faria com que fossem transformados, de cruéis perseguidores a patronos e guardiões de Sua Igreja. Inicialmente, os magistrados exerceram tirania contra a Igreja porque o tempo ainda não havia chegado em que “beijariam o Filho” (Sl 2:12) e, deixando a violência de lado, se tornariam os aios da Igreja que eles haviam atacado, conforme a profecia de Isaías que, sem dúvidas, se refere a vinda de Cristo (Isaías 49:6-23). Nem foi sem motivo que quando Paulo ordenou que as orações fossem feitas pelos reis e outros governantes terrenos, ele que era para que “tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade” (I Tm 2:2).
Como Cristo é verdadeiro manso, reconheço que Ele requer que imitemos Sua mansidão e gentileza. Mas isso não impede os magistrados piedosos de providenciar a tranquilidade e segurança da Igreja pela defesa da piedade. Negligenciar essa parte de suas obrigações seria a maior perfídia e crueldade. Nada pode ser tão mais vil do que que tratar a salvação das almas como insignificante quando vemos estas almas miseráveis sendo levadas à destruição eterna pela impunidade concedida a impostores ímpios, iníquos e perversos. Mas, se sob este pretexto, os supersticiosos já ousaram derramar sangue inocente, eu respondo que o mandamento de Deus não pode ser anulado por qualquer abuso ou corrupção dos homens. Pois, se a mera causa da morte abundantemente distingue os mártires de Cristo dos malfeitores, ainda que o castigo seja idêntico, então os executores do Papa não podem, pela injusta crueldade, fazer com que o zelo de piedosos magistrados, ao castigar mestres falsos e nocivos, deixe de ser agradável a Deus. E isso é admiravelmente expresso nas palavras de Moisés, quando ele os faz lembrar que o juízo precisa ser segundo a Lei de Deus. Eu já disse que essa severidade não deve incluir erros particulares, mas somente onde a impiedade se transforma em rebelião. Quando é dito, “para te apartar do caminho que te ordenou o SENHOR teu Deus” (Dt 13:5), concluímos que ninguém deve ser entregue ao castigo, exceto aqueles que foram convencidos pela clara Palavra de Deus, para que não sejam arbitrariamente julgados pelos homens. A partir dai, conclui-se também que o zelo estará errado se usar a espada precipitadamente, sem que tenha existido anteriormente uma investigação legal.
Extraído de:
http://resistireconstruir.wordpress.com/2013/10/13/comentario-de-deuteronomio-135/