“Mas se houver morte, então darás vida por vida, Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, Queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe”.(Êxodo 21:23-25)
“Quando também alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: Quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará”.
(Levítico 24:19-20)
“Olho por olho, dente por dente” é um mandamento que é frequentemente distorcido para justificar a vingança pessoal. Até mesmo muitos cristãos pensam que o mandamento fala de vingança pessoal e por isso argumentam que este mandamento foi abolido no Novo Testamento. Afinal, Jesus não nos ensinou a perdoar? O fato é que este mandamento somente autoriza a vingança pública administrada por juízes. O propósito deste artigo é demonstrar que o princípio moral que rege este mandamento, além de não ter sido abolido, permanecerá, não somente até o fim do mundo, mas até mesmo na eternidade.
Primeiro, o Antigo Testamento, tanto quanto o Novo Testamento, ensina a perdoar e é contrário a ideia de vingança pessoal. “Olho por olho, dente por dente” é um mandamento que encontramos no vigésimo-quarto capítulo de Levítico. Mas somente cinco capítulos antes, encontramos o seguinte:
“Não odiarás a teu irmão no teu coração; não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por causa dele. Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR”.
(Levítico 19:17-18)
Aqui somos ensinados a amar o nosso próximo como a nós mesmos. Somos informados aqui que o amor ao próximo inclui as obrigações de, primeiro, não odiá-lo em nosso coração, segundo, não deixar de exortá-lo quando ele estiver em pecado, terceiro, não se vingar dele e, quanto, não guardar ira contra ele. Aqui nós temos, então, uma clara proibição de vingança no mesmo livroque ordena “olho por olho, dente por dente”. Sendo assim, não temos qualquer base racional para dizer que exista uma contradição entre as duas coisas. A contradição somente existe a partir do momento em que os homens distorcem o significado de “olho por olho”, diferente do sentido original do mandamento que encontramos em Levítico.
Eu já li alguns críticos da Bíblia argumentando que o mandamento de amar ao próximo que encontramos em Levítico 19:17-18 não inclui o amor aos estrangeiros, mas somente aos “filhos do teu povo” (Lv 19:7), isto é, aos próprios israelitas. Pura bobagem. De fato, em Levítico 19:17-18 especificamente, o texto dá enfase ao amor entre os próprios israelitas, mas isso não significa que não havia a mesma obrigação de amar os estrangeiros. O mesmo capítulo diz:
“Quando um estrangeiro peregrinar convosco na vossa terra, não o maltratareis. Como um natural entre vós será o estrangeiro que peregrinar convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos…”
(Levítico 19:33-34)
E também em Deuteronômio:
“Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e não mais endureçais a vossa cerviz. Pois o Senhor vosso Deus, é o Deus dos deuses, e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem recebe peitas; que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Pelo que amareis o estrangeiro…”
(Deuteronômio 10:16-19)
O resto do Antigo Testamento ordena o mesmo:
“Se encontrares desgarrado o boi do teu inimigo, ou o seu jumento, sem falta lho reconduzirás. Se vires deitado debaixo da sua carga o jumento daquele que te odeia, não passarás adiante; certamente o ajudarás a levantá-lo”.
(Êxodo 23:4-5)
“Não digas: vingar-me-ei do mal; espera pelo Senhor e ele te livrará”.
(Provérbios 20:22)
“Quando cair o teu inimigo, não te alegres, e quando tropeçar, não se regozije o teu coração; para que o Senhor não o veja, e isso seja mau aos seus olhos, e desvie dele, a sua ira”.
(Provérbios 24:17-18)
“Não digas: Como ele me fez a mim, assim lhe farei a ele; pagarei a cada um segundo a sua obra”.
(Provérbios 24:29)
“Olho por olho, dente por dente”, em seu contexto original, não contradiz nada disso. Para entender porque não contradiz, precisamos entender a função dos magistrados:
“Juízes e oficiais porás em todas as tuas cidades que o SENHOR teu Deus te der entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça. Não torcerás o juízo, não farás acepção de pessoas, nem receberás peitas; porquanto a peita cega os olhos dos sábios, e perverte as palavras dos justos. A justiça, somente a justiça seguirás; para que vivas, e possuas em herança a terra que te dará o SENHOR teu Deus”.
(Dt 16:18-20)
A função dos juízes é julgar crimes em defesa das vítimas. Juízes devem zelar somente pela justiça e jamais pelos seus próprios interesses. Por isso diz: “não farás acepção de pessoas, nem receberás peitas”. Com extensão da necessidade de amar o próximo e não fazer acepção de pessoas, Deus proíbe o racismo e exige até mesmo, que os estrangeiros que nem sequer eram cidadãos de Israel, tivessem seus direitos defendidos nos tribunais de Israel:
“E quando o estrangeiro peregrinar convosco na vossa terra, não o oprimireis. Como um natural entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; ama-lo-ás como a ti mesmo, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o SENHOR vosso Deus. Não cometereis injustiça no juízo, nem na vara, nem no peso, nem na medida. Balanças justas, pesos justos, efa justo, e justo him tereis. Eu sou o SENHOR vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito. Por isso guardareis todos os meus estatutos, e todos os meus juízos, e os cumprireis. Eu sou o SENHOR“.
(Levítico 19:33-37)
E também:
“Uma mesma lei tereis; assim será para o estrangeiro como para o natural; pois eu sou o SENHOR vosso Deus”.
(Levítico 24:22)
Em Levítico 19 vemos que o dever dos juízes de julgar com justiça é uma extensão da necessidade de amar o próximo. Depois de mandar amar os “filhos do teu povo” (v. 18) e também “o estrangeiro” (v. 34), Deus explica que isso inclui a necessidade de não cometer injustiça no juízo. Amar ao próximo, então, inclui providenciar os meios para que meu próximo tenha um julgamento justo diante dos magistrados civis. Esse é o contexto para entender o que é dito sobre “olho por olho”. Levítico 24, que dá continuidade a mesma ideia da necessidade de um julgamento justo como extensão do amor ao próximo, diz:
“Quando também alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: Quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará… quem matar um homem será morto. Uma mesma lei tereis; assim será para o estrangeiro como para o natural; pois eu sou o SENHOR vosso Deus”.
(Levítico 24:19-22)
Como está escrito também:
“Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e ela der à luz prematuramente, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, Queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe“.
(Êxodo 21:22-25)
“Olho por olho, dente por dente”, então, significa simplesmente que a pena por um crime deve ser proporcional ao delito.
Em Êxodo 21:22-25, encontramos o caso de um homem que, em meio a uma briga, provoca a morte de um bebê no ventre da mãe. Por causa da morte do bebê, ele é culpado de homicídio e a pena para o homicida é a morte. Um capítulo depois, em Êxodo 22, encontramos um caso de roubo:
“Se alguém furtar boi ou ovelha, e o degolar ou vender, por um boi pagará cinco bois, e pela ovelha quatro ovelhas“.
(Êxodo 22:1)
Por que a pena por homicídio é a morte, mas a pena por roubo não? Por causa do princípio do “olho por olho”. A pena por um crime deve ser proporcional ao delito. O roubo não é grave o suficiente para que o ladrão seja punido com morte, mas o homicídio é. Alguns crimes são mais graves do que outros. A Lei de Deus nos diz exatamente qual é a gravidade dos crimes e, com base nisso, nos diz o tipo de pena que deve ser aplicada pelos juízes que julgam tais crimes. Sem um padrão de justiça que diga exatamente qual é a gravidade dos crimes para que as penas sejam aplicadas, os magistrados civis não seriam capazes de obedecer o mandamento de Deus: “Não cometereis injustiça no juízo” (Lv 19:35), “a justiça, somente a justiça seguirás” (Dt 16:20).
Concluímos, então, que abolir o “olho por olho, dente por dente” significa abolir a justiça de nossos tribunais, pois seria abolir o princípio de que a pena por um crime deve ser proporcional ao delito. A Bíblia não trata o “olho por olho” como contrário ao amor. Pelo contrário, trata como extensão do amor, na medida que trata a existência de tribunais justos como uma extensão do amor. Se sob o Novo Testamento, os magistrados continuam tendo que ser justos, segue-se que o “olho por olho” é confirmado e continua a vigorar.
Aqueles que argumentam que o “olho por olho” foi abolido apelam para as palavras de Jesus no Sermão da Montanha:
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra”.
(Mateus 5:38-39)
Este texto pode ser facilmente entendido se partimos do contexto maior de que o propósito de Jesus no Sermão da Montanha não era o de anular ou abolir a Lei de Deus revelada por meio de Moisés, mas de confirmá-la e refutar as distorções dos escribas e fariseus:
“Não cuideis que vim destruir a Lei ou os Profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da Lei, sem que tudo seja cumprido. Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus.Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus”.
(Mateus 5:17-20)
Jesus criticou aqueles que violam os mandamentos da Lei, por menor que sejam. Isso inclui os mandamentos sobre a necessidade dos juízes serem justos e julgarem com justiça. Jesus explicitamente argumentou com base na justiça dos tribunais alguns versículos depois:
“Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil“.
(Mateus 5:25-26)
O que Jesus explicou ai é simplesmente uma aplicação prática do “olho por olho”. Alguém tinha trapaceado seu próximo e, por conta disso, é denunciado e coagido a pagá-lo pelos juízes e oficiais. Jesus não critica os juízes por isso. Este é o sentido original do “olho por olho”. O problema é que os escribas e fariseus distorciam a Lei de Deus para benefício próprio (cf. Mt 15:1-9). “Ouvistes que foi dito” se refere a maneira com que a Lei era transmitida e ensinada desde os antigos: “Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo: Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos antigos? pois não lavam as mãos quando comem pão. Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Deus pela vossa tradição?” (Mt 15:1-3) Por isso Jesus disse que nossa justiça deveria exceder a justiça dos escribas e fariseus. Devemos guardar os mandamentos de Deus, por menor que sejam, e isso inclui os mandamentos sobre a necessidade de estabelecer tribunais justos. Quando Jesus comentou o “olho por olho, dente por dente”, Ele não estava criticando o próprio mandamento que fora dado por Deus, mas a maneira com que era ensinado e aplicado pelos escribas e fariseus. Os escribas e fariseus ensinavam que este mandamento ensinava a vingança pessoal. Mas, como já foi demonstrado aqui, a própria Lei proibia a vingança pessoal. O que Jesus fez foi reafirmar o que a própria Lei já ensinava sobre o perdão e criticar a maneira com que isso era ensinado e defendido pelos escribas e fariseus.
Cito um exemplo prático para que isso fique ainda mais claro: Há alguns dias conversando com um amigo, falei sobre alguns problemas que existem em igrejas de linha neo-pentecostal. No meio da conversa lembro de ter dito mais ou menos o seguinte: “Eles estão sempre dizendo, ‘o SENHOR te porá por cabeça, e não por cauda’, e ignoram que muitos são chamados por Deus para serem mártires”. Alguém que não saiba do contexto maior da conversa, que pega essa frase isoladamente e que não conhece muito do que eu acredito, pode ser levado acreditar que eu discordo dessa frase: “o SENHOR te porá por cabeça, e não por cauda”. Mas eu não discordo da frase, conheço seu contexto original, ela se encontra em Deuteronômio 28:13 e acredito piamente que ela continua a vigorar. A minha crítica não foi contra a própria frase, que tem um significado específico em seu contexto original. Eu estava citando a maneira com que ela é interpretada e ensinada por muitos neo-pentecostais. Assim também, Jesus não estava criticando ou anulando o “olho por olho”. Ele estava criticando a maneira com que ela era distorcida pelos escribas e fariseus e mostrando que ela não poderia ser usada para anular a necessidade de perdão e misericórdia. Como Ele disse logo em seguida:
“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus”.
(Mateus 5:43-44)
Novamente, Jesus não estava criticando qualquer mandamento da própria Lei. Ele está dando continuidade à mesma crítica que Ele havia feito dos escribas e fariseus sobre interpretar a Lei de forma a favorecer seus próprios interessas. A Lei não autoriza, em lugar nenhum, a odiar nossos inimigos. Pelo contrário, a Lei manda amar nosso próximo independente dele ser nosso inimigo ou não. Isso era uma inferência equivocada dos escribas e fariseus que foi devidamente corrigida por Jesus.
“Olho por olho, dente por dente”, tem um significado muito específico no contexto original. O mandamento não autorizava a vingança pessoal, somente a vingança pública administrada por juízes. O mandamento exige simplesmente que os juízes julguem com justiça, retribuindo o crime de forma que seja proporcional ao delito. Um homicida, por exemplo, deve ser retribuído com a pena de morte. Um ladrão deve ser obrigado a restituir o que roubou e ainda pagar uma multa em cima. Um marido que espanca a esposa deve ser, entre outras coisas, espancados sob a autoridade dos juízes. Este princípio, além de não ter sido abolido, permanecerá, não somente até o fim do mundo, mas até mesmo na eternidade.
Por que digo até mesmo na “eternidade”?
Porque o “olho por olho, dente por dente” é a base pela qual Deus condena os réprobos ao inferno e também foi o princípio pelo qual Deus exigiu a expiação de Cristo como base para salvar os eleitos. O tormento consciente eterno no inferno é uma pena proporcional ao delito de sermos pecadores contra um Deus infinitamente santo. A condenação dos réprobos na eternidade, portanto, não é outra coisa se não a aplicação do “olho por olho” na eternidade. Da mesma forma, a expiação de Cristo na cruz como base para salvar os eleitos é proporcional ao que os eleitos deveriam sofrer no inferno por causa do valor infinito da pessoa de Cristo. Portanto, a expiação de Cristo na cruz foi simplesmente a aplicação do “olho por olho” contra Cristo em nosso lugar, em relação a condenação eterna que merecíamos.
O “olho por olho”, então, não foi de qualquer maneira abolida. Deve ser aplicado pelos juízes para que governem com justiça, foi aplicado por Deus na cruz contra Cristo e será aplicado no juízo final contra os réprobos quando forem entregues ao lago de fogo e enxofre.
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