Ilustrações das Duas Vontades em Deus
A Morte de Cristo
O exemplo mais convincente da vontade de Deus de que o pecado venha a ocorrer enquanto ao mesmo tempo desaprova o pecado é a morte de seu perfeito, divino Filho. A traição de Jesus por Judas foi um ato moralmente mau inspirado de forma imediata por Satanás (Lucas 22:3). No entanto, em Atos 2:23 Lucas diz: “Esse Jesus [foi] entregue pelo determinado desígnio (boule) e presciência de Deus”. A traição foi pecado, e envolveu a instrumentalidade de Satanás; mas era parte de um plano ordenado de Deus. Ou seja, há um sentido no qual Deus quis a entrega de seu Filho, apesar do ato ter sido um pecado.
Além disso, o desprezo de Herodes por Jesus (Lucas 23:11), a conveniência covarde de Pilatos (Lucas 23:24), o "Crucifica-o! Crucifica-o!" dos judeus (Lucas 23:21) e a zombaria dos soldados gentios (Lucas 23:36), também foram atitudes e atos pecaminosos. No entanto, em Atos 4:27-28, Lucas expressa seu entendimento da soberania de Deus nestes atos ao registrar a oração dos santos de Jerusalém:
"Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho (boule) tinham anteriormente determinado que se havia de fazer.
Herodes, Pilatos, os soldados e a multidão dos judeus levantaram suas mãos para se rebelarem contra o Altíssimo, apenas para descobrir que sua rebeldia foi um serviço (inconsciente) dos inescrutáveis desígnios de Deus.
A terrível morte de Cristo foi vontade e obra de Deus Pai. Isaías escreveu: "E nós o reputávamos por aflito, ferido por Deus... ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar" (Isaías 53:4,10). A vontade de Deus estava muito engajada nos eventos que levaram seu Filho até a morte na cruz. Deus considerou que "convinha que se consagrasse pelas aflições o príncipe da salvação deles" (Hebreus 2:10). No entanto, como Jonathan Edwards aponta, o sofrimento de Cristo "não poderia vir a acontecer, a não ser pelo pecado. Porque desprezo e vergonha eram coisas que Ele deveria sofrer."
É quase desnecessário dizer que Deus quer obediência à sua lei moral, e que Ele quer isso de uma maneira que pode ser rejeitada por muitos. Isto é evidente a partir de vários textos: "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade (thelema) de meu Pai, que está nos céus." (Mateus 7:21). "Porque qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe.'' (Mateus 12:50). "Aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente." (1 João 2:17). A ''vontade de Deus" nesses textos é a instrução revelada e moral, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, que proíbe o pecado.
Portanto, sabemos que não era a ''vontade de Deus" que Judas, Pilatos, Herodes, os soldados gentios e a multidão de judeus desobedecessem a lei moral de Deus, pecando em entregar Jesus para ser crucificado. Mas também sabemos que foi a vontade de Deus que isso viesse a acontecer. Dessa forma sabemos que Deus, em algum sentido, quer o que Ele não quer em outro sentido. A declaração de I. Howard Marshall é confirmada pela morte de Jesus: "Nós devemos certamente distinguir entre o que Deus gostaria de ver acontecer e o que ele realmente deseja que aconteça”.
A Guerra Contra o Cordeiro
Há duas razões para que nossa próxima parada seja Apocalipse 17:16-17. Uma delas é que a guerra contra o Filho de Deus, que atingiu seu clímax de pecaminosidade na cruz, tem sua consumação final de um modo que confirma o que temos visto sobre a vontade de Deus. A outra razão é que este texto revela o entendimento de João da participação ativa de Deus no cumprimento das profecias cujo cumprimento envolve pecado. João tem uma visão de alguns eventos finais da história:
'Os dez chifres que viste e a besta, esses odiarão a meretriz, e a farão devastada e despojada, e lhe comerão as carnes, e a consumirão no fogo. Porque em seu coração incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma e dêem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus.' (Apocalipse 17:16-17).
Sem entrar em todos os detalhes dessa passagem, a questão relevante é clara. A besta "sai do abismo" (Apocalipse 17:8). Ela é a personificação do mal e da rebelião contra Deus. E os dez chifres são dez reis (v. 12) e eles “empreenderam guerra contra o Cordeiro" (v. 14).
Empreender guerra contra o Cordeiro é pecado e pecado é contrário à vontade de Deus. No entanto, o anjo diz (literalmente), "Porque Deus tem posto em seus corações [dos dez reis], que cumpram o seu intento, e tenham uma mesma idéia, e que dêem à besta o seu reino, até que se cumpram as palavras de Deus.'' (v. 17). Por isso, Deus quis (em um sentido) influenciar o coração dos dez reis de forma que eles pudessem fazer o que é contra a sua vontade (em outro sentido).
Além disso, Deus fez isso no cumprimento das palavras proféticas. Os dez reis irão colaborar com a besta "até que se cumpram as palavras de Deus" (v. 17). Isto implica algo crucial sobre o entendimento de João do cumprimento das "profecias que levaram à queda do Anticristo." Isso implica que (pelo menos do ponto de vista de João) as profecias de Deus não são meras previsões que Deus sabe que acontecerão, mas sim as intenções divinas que ele garante que irá acontecer. Sabemos disso porque o versículo 17 diz que Deus está agindo para fazer com que os dez reis façam aliança com a besta "até que se cumpram as palavras de Deus". João não está exultante com a maravilhosa presciência de Deus em prever um acontecimento ruim. Ao contrário, ele está exultante com a maravilhosa soberania de Deus de fazer certo que esse evento ruim venha a acontecer. A profecia cumprida, na mente de João, não é apenas previsão, mas também a promessa executada.
Isto é importante porque João nos diz em seu Evangelho que haviam profecias do Antigo Testamento sobre os eventos que cercaram a morte de Cristo que envolvem pecado. Isto significa que Deus queria produzir eventos que envolvem coisas que ele proíbe. Estes eventos incluem a traição de Judas a Jesus (João 13:18; Salmo 41:9), o ódio que Jesus recebeu de seus inimigos (João 15:25; Salmo 69:4; 35:19), o lançar sorte pelas roupas de Jesus (João 19:24, Salmo 22:18), e a perfuração do lado de Jesus (João 19:36-37; Êxodo 12:46, Salmos 34:20, Zacarias 12:10). João expressa sua teologia da soberania de Deus com as palavras: "Estas coisas aconteceram para que a Escritura fosse cumprida.'' Em outras palavras, os eventos não foram uma coincidência que Deus meramente previu, mas um plano que Deus propôs realizar. Assim, novamente encontramos as palavras de I. Howard Marshall confirmadas: "Nós devemos certamente distinguir entre o que Deus gostaria de ver acontecer e o que Ele realmente deseja que aconteça"