O conhecimento da verdade acima exposta leva a um adequado julgamento sobre a Providência
Tendo nós esse conhecimento, resultarão necessariamente tanto a bondade de Deus presente em toda prosperidade como a paciência e a perseverança na adversidade; e, ademais, uma singular segurança quanto ao que possa suceder. Porque toda e qualquer coisa que aconteça de acordo com o nosso querer, atribuiremos a Deus, seja que percebamos o benefício que Ele nos faz por meio dos homens, seja que nos ajude por meio de suas outras criaturas. Porque este é o julgamento que faremos em nosso coração: “Certamente foi Deus que levou o coração deles a me querer bem, e fez deles instrumentos da Sua benignidade em meu favor”. Havendo fertilidade no solo, consideraremos que foi o Senhor que mandou o céu fazer chover sobre a terra, a fim de que frutificasse. Em todos os outros casos de prosperidade, não duvidaremos de que unicamente a bênção de Deus é a sua causa. Quanto às Suas admoestações e advertências, não seremos ingratos. Ao contrário, se nos sobrevier alguma adversidade, imediatamente elevaremos o nosso coração a Deus, o único que nos poderá habilitar à paciência e à tranqüilidade.
Se José ficasse pensando na deslealdade dos seus irmãos e ficasse remoendo o que eles lhe tinham feito, jamais os teria tratado com bravura fraternal. Mas,visto que dirigiu seu pensamento a Deus, esquecendo a injúria sofrida, foi inclinado à mansidão e à brandura, ao ponto de ele próprio os consolar, dizendo: “Não vos entristeçais, nem vos irriteis contra vós mesmos por me haverdes vendido para aqui; porque, para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós. Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem” (Gênesis 45:5; 50:20).
Se Jó ficasse com a atenção fixa nos [sabeus e nos] caldeus que o tinham ultrajado, seria inflamado pelo desejo de vingança. Mas, uma vez que reconheceu igualmente a ação de Deus, consolou-se com esta bela declaração: “O Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1:13-17,21)
A mesma coisa com Davi; se se dedicasse totalmente a considerar a maldade de Simei, que o perseguiu com palavras ofensivas e lhe atirando pedras, teria incitado os seus soldados à vingança. Mas, como entendeu que ele não estava fazendo aquilo sem que Deus a isso o movesse, apaziguou os seus valentes, em vez de despertar-lhes a ira, dizendo-lhes: “Deixai-o amaldiçoar; pois, se o Senhor lhe disse: Amaldiçoa a Davi, quem diria: Por que assim fizeste?”. (2 Samuel 16:10)
Se não houver melhor remédio contra a ira e a impaciência, de bom proveito será meditar na providência de Deus no sentido de que sempre possamos reduzir o nosso pensamento a este ponto: O Senhor o quis; portanto, recebamo-lo com paciência. Não somente porque ninguém pode resistir a Ele, mas também porque Ele não quer coisa alguma que não seja justo e benéfico.
Comprovação bíblica
Essa a razão pela qual a Escritura se firma tão diligentemente em nos provar este artigo. Como quando Deus declara, por meio de Amós: “Sucederá algum mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” (Amós 3:6). E também, quando Jeremias repreende os que pensam que pode sobrevir alguma calamidade sem que Deus a tenha ordenado. Porque, se os males que padecemos procedem dos homens, o que se diz é que Deus os santificou ou consagrou para executarem a Sua obra, e, por isso são chamados redes, gládios ou espadas e machados, que Ele próprio maneja; e mais, “instrumentos da sua ira, os quais ele levanta com um simples assobio".(Isaías 13:3; Ezequiel 12:13; 17:20; Salmo 17:13,14; Isaías 10:13-17; 13:3-5; Jeremias 1:10,18). Disso decorre que sobre Pilatos e Herodes, que conspiraram para levar Cristo à morte, se diz que planejaram fazer o que o conselho de Deus tinha decretado (Atos 4:27-28). Nesse mesmo sentido se afirma que os judeus mataram Cristo conforme o Pai celeste havia determinado, de forma que realizaram todas as coisas que estavam escritas sobre Ele. Como também várias vezes se repete nos evangelhos que os soldados que O crucificaram puseram em execução tudo o que estava predito na Escritura (Atos 2:23). Essas coisas todas se reportam à realidade aqui focalizada, de modo que, sempre que os homens nos aflijam com a sua maldade, não deixemos de considerar a ação de Deus e de ter como coisa certa e segura o seguinte: Por mais impiedosamente que eles se portem conosco, isso não sucede senão pela justa ordenação de Deus, que o permite, o quer e o dispõe dessa forma. Ou então, se alguma adversidade nos oprime sem a interferência [causal] dos homens, a Escritura nos declara que a esterilidade da terra, a fome, as doenças em geral e todas as outras coisas que consideramos casuais, são maldições de Deus, ou, ao menos, castigos que Ele nos envia (Levítico 26; Deuteronômio 27 e 28).
As causas secundárias
Todavia, se não fecharmos os olhos, não poderemos deixar de dar atenção às causas secundárias. Porque importa considerar ministros da benignidade de Deus aqueles dos quais recebemos algum bem, não os menosprezando como se não merecessem nenhum gesto de graça ou de bênção da nossa parte por sua atitude humanitária, mas, antes, reconhecendo e confessando de bom grado que lhes somos gratos [por seus favores]; como também nos esforçando para pagar-lhes o bem com o bem, quando houver oportunidade.
Em resumo, prestaremos a Deus a honra de reconhecê-lo como o principal Autor de todo bem; mas também honraremos os homens como ministros e despenseiros dos Seus benefícios, entendendo que Deus nos quis tornar devedores a eles, visto que Ele se mostrou nosso benfeitor por intermédio das mãos deles. Se sofrermos algum dano ou prejuízo, por nossa negligência ou displicência, estaremos julgando bem se pensarmos que isso é feito pela vontade de Deus, não deixando, porém, de imputar a nós a culpa. Se algum dos nossos parentes ou amigos, do qual deveríamos cuidar, morrer sem ter recebido os necessários cuidados, embora não ignoremos que ele chegou ao termo que não poderia ultrapassar, isso não diminuirá o nosso pecado. Mas, sim, visto que não cumprimos o nosso dever, tomaremos a sua morte como tendo ocorrido por nossa culpa. Por mais forte razão, se houver astúcia enganosa ou maldade deliberada ao se cometer assassínio ou latrocínio, não devemos escusar esses crimes alegando como pretexto a providência de Deus. Mas, num mesmo fato [dessa natureza], devemos ver a justiça de Deus e a iniquidade do homem, sendo evidente que ambas estão presentes.
As causas secundárias em relação ao futuro
Quanto às coisas futuras, teremos em conta principalmente as causas secundárias das quais falamos acima. Porque julgamos que é uma bênção dar-nos Deus os meios humanos para por eles sustentar-nos e preservar-nosb. Portanto, nós nos aconselharemos sobre o que fazer, não menosprezando a ajuda de outros, mas buscando o auxílio daqueles que vemos que têm condições de ajudar-nos. Tendo ainda em conta que é Deus que coloca à nossa disposição todas as criaturas que nos podem ser proveitosas, trataremos de pô-las em uso como legítimos instrumentos da Sua providência. E, como não temos certeza do resultado dos nossos empreendimentos, exceto que confiamos em Deus, certos de que em tudo e por tudo nos proverá do necessário para o nosso bem, procuraremos dedicar-nos ao que nos for proveitoso, aplicando a nossa inteligência quanto estiver ao nosso alcance. Entretanto, ao fazermos nossos planos, não seguiremos os nossos sentidos e a nossa razão, mas nos encomendaremos à sabedoria de Deus, para que esta nos conduza bem e retamente. Finalmente, a nossa confiança não estará depositada de tal modo na ajuda e nos meiosc humanos que neles descansemos quando os tivermos em mãos, ou que, quando nos faltarem, percamos a coragem e o ânimo. Porque a nossa mente estará firmada unicamente na providência de Deus, e não permitiremos que a consideração das coisas presentes distraia a nossa atenção dela.
Uma singular felicidade dos cristãos
Pois bem, neste ponto pode-se ver uma singular felicidade dos cristãos. A vida humana está rodeada e pouco menos que sitiada por misérias sem fim. Sem ir mais longe, vê-se que o nosso corpo é um receptáculo de mil e uma doenças, e ele mesmo alimenta em si as causas dos seus males. Para onde quer que vá, o homem leva consigo muitas espécies de morte, tanto que se pode dizer que, de certa maneira, a sua vida está envolvida na morte. Porque, que outra coisa vamos dizer, quando não se pode sentir frio nem suar sem perigo? Além disso, para qualquer lado que nos viremos, tudo o que há em torno de nós não somente é suspeito, mas nos ameaça mais ou menos abertamente, como que tencionando a nossa morte. Quando embarcamos num navio, pode-se dizer que não há um palmo de distância entre a morte [e nós]a. Se montamos um cavalo, basta que tropece numa pedra para que nos faça quebrar o pescoço. Caminhemos pelas ruas: tantos são os perigos que há sobre nós quantas são as telhas sobre os tetos. Se temos uma espada, ou se alguém por perto a tem, pouco ou nada faltará para que nos fira. Onde quer que vejamos feras ou selvagens ou rebeldes ou gente difícil de governar, estão todos armados contra nós. Se nos encerramos num belo jardim, onde tudo é aprazível, uma serpente poderá estar ali oculta. As casas em que moramos, como estão sempre sujeitas a incêndio, de dia nos ameaçam empobrecer, e de noite ameaçam ruir sobre nós. Quanto às propriedades que acaso tenhamos, estando elas sujeitas a granizo, geada, seca e outras tempestades e intempéries, o que nos prenunciam é esterilidade e, conseqüentemente, fome. Deixo de lado os envenenamentos, as emboscadas, as violências que assediam a vida do homem, tanto em casa como no campo. Entre tantas dificuldades que nos deixam perplexos, não é verdade que o homem só pode sentir-se mais que miserável? Isto é, o homem meio vive meio não vive, sustentando-se com grande e penoso esforço, premido por tristezas e pelo desalento. É tudo como se tivesse a faca na garganta a todo instante.
Haverá exagero aí?
Alguém dirá que essas coisas não são tão freqüentes, ou que, ao menos, não acontecem sempre, nem a toda gente; e que, por outro lado, não podem vir todas de uma vez. Reconheço. Mas, visto que pelo exemplo de outros somos advertidos de que tais coisas podem suceder conosco, e sendo que a nossa vida não está isenta de nenhuma delas, não podemos deixar de temê-las, como se houvessem de nos sobrevir. Que miséria maior poderíamos imaginar que a de estarmos sempre tremendo de angústia? É preciso dizer, ademais, que não é sem causar opróbrio a Deus que se declara que Deus abandonou o homem, a mais nobre de Suas criaturas, aos riscos temerários do acaso.
Mas não é a nossa intenção aqui falar da miséria em que o homem estaria, se vivesse sujeito aos azares da sorte. Ao contrário, se a providência de Deus reluz no coração do crente fiel, ele não somente está livre do medo e da aflição, que antes o oprimiam, mas também é libertado de toda dúvida. Porque, como há bom motivo para temermos a sorte, também temos boa razão para não nos atrevermos a abandonar audaciosamente a Deus. Para nós é, pois, uma consolação maravilhosa compreender que o Senhor tem de tal maneira todas as coisas em Seu poder, que as governa segundo o Seu querer e as dirige com a Sua sabedoria, e nada sucede, senão como Ele determinou. E ainda mais, que Ele nos recebeu à Sua custódia e proteção, nos confiou aos cuidados dos Seus anjos, a fim de que nem a água, nem o fogo, nem a espada, nem coisa alguma possam prejudicar-nos ou causar-nos dano, senão o que nos traga o Seu beneplácito. Porquanto, como diz o Livro de Salmos (Salmo 91:3-6), “Ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa. Cobrir-te-á com as suas penas, e, sob suas asas, estarás seguro; a sua verdade é pavês e escudo. Não te assustarás do terror noturno, nem da seta que voa de dia, nem da peste que se propaga nas trevas, nem da mortandade que assola ao meio-dia”, etc. Dele vem a confiança na qual os Seus santos se gloriam: “O Senhor está comigo; não temerei. Que me poderá fazer o homem? O Senhor está comigo entre os que me ajudam. O Senhor é a minha luz e a minha salvação; de quem terei medo? O Senhor é a fortaleza da minha vida; a quem temerei? Em Deus, cuja palavra eu exalto, neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer um mortal? Ainda que um exército se acampe contra mim, não se atemorizará o meu coração; e, se estourar contra mim a guerra, ainda assim terei confiança” (Salmo 118:6,7; 27:1,3; 56:4).
Onde o crente poderá ter tal segurança, a qual jamais poderá ser extirpada, senão no fato de que, quando o mundo parece terrivelmente transtornado e virado ao avesso, ele sabe que Deus age no sentido de dirigi-lo, sendo que ele espera confiante que todas as Suas obras lhe serão benéficas. Se ele se vê assaltado ou molestado pelo Diabo ou por malfeitores, não fará bem em se fortalecer trazendo à memória a providência de Deus? Pois, sem a recordação dela, só lhe restará o desespero. Por outro lado, quando o crente sabe que o Diabo e toda a companhia de malfeitores são mantidos firmemente seguros pela mão de Deus, como que com rédeas, de tal modo que não podem conceber nenhum mal, e, mesmo quando o tenham concebido, não conseguem tramar a sua execução; e ainda quando a consigam tramar, não o executarão; não conseguem nem mesmo levantar o dedo mínimo, a não ser que Deus lhes ordene que o façam; isso é suficiente para consolar e fortalecer o cristão. Porque, assim como é somente Deus que pode armar, acionar e mudar o furor deles como bem Lhe parece, assim também está em Seu poder contê-los, para que não façam tudo segundo a sua intemperança. Por essa causa disse o Senhor (Isaías 7:1-9) que Rezim e o rei de Israel, tendo conspirado para destruir a nação de Judá, e parecendo, em sua fúria, tochas ardentes capazes de inflamar toda a terra, eram na verdade nada mais que “dois tocos de tições” dos quais só saia um pouco de fumaça. Digo, em suma, para não demorar tempo demais neste propósito, que a maior miséria que um homem pode ter é ignorar a providência de Deus; e, por outro lado, que é uma singular bem-aventurança conhecê-la.
Sobre a imutabilidade do conselho de Deus
Poderia ser suficiente o que já falamos sobre a providência de Deus, para instrução e consolação dos crentes (porque jamais se diria o bastante para satisfazer a curiosidade dos tolos; e não vale a pena ter esse trabalho). Seria suficiente, digo, não fossem algumas passagens da Escritura que parecem significar que o conselho (ou o propósito) de Deus não é firme e imutável como foi dito, mas que muda conforme a disposição e a distribuição das coisas inferiores.
Primeiro, às vezes se faz menção do arrependimento de Deus. Como quando se declara que Ele se arrependeu de haver criado o homem e de haver elevado Saul à coroa real, e que se arrependeria do mal que se havia proposto enviar sobre o Seu povo, ao vê-lo corrigir-se (Gênesis 6:6; I Samuel 15:11; Jeremias 18:7-10). Lemos também que Ele aboliu e anulou o que havia determinado. Por meio de Jonas, Ele tinha anunciado aos ninivitas que a sua cidade seria destruída após quarenta dias; mas, depois da conversão deles, Deus inclinou-se à clemência (Jonas 3:4,10). Também o Senhor, por meio de Isaías, havia anunciado a morte de Ezequias, mas a protelou, comovido por suas lágrimas (Isaías 38:1-5). Por causa dessas passagens, muitos argumentam dizendo que Deus não estabeleceu por um decreto eterno o que faria com relação aos homens, mas sim que Ele ordena cada dia e cada hora o que Ele sabe que é bom e razoável; e o faz conforme o requerem os méritos de cada pessoa.
No que se refere à palavra penitência, devemos adotar esta solução: O arrependimento não pode compactuar-se com Deus, como igualmente não o podem a ignorância, o erro e a fraqueza. Porque, se ninguém se coloca por decisão própria ou por querer na necessidade de arrepender-se, se dissermos que Deus se arrepende, estaremos confessando, ou que Ele ignora o que há de acontecer, ou que não o pode evitar, ou que em Seu conselho e propósito precipitou-se inconsideradamente. Ora, tão longe isso está do entendimento do Espírito Santo que, ao fazer Ele menção dessa classe de arrependimento, nega que Deus possa arrepender-se, visto que não é homem. (I Samuel 15:20) É, pois, certo que o governo que Deus exerce sobre as coisas humanas é constante, perpétuo e totalmente isento de arrependimento.
E, a fim de que não se possa pôr em dúvida a constância do Seu propósito e do Seu governo, faço notar que até os Seus adversários se vêem constrangidos a dar testemunho em Seu favor. Balaão, querendo ou não, não pôde conter-se e evitar dizer que “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa” (Números 23:19). Vê-se, pois, que Deus pode fazer com que tudo o que Ele diz se cumpra e se realize.
Sentido da palavra arrependimento
Que significa, então, a palavra arrependimento? Alguém perguntará. Respondo que ela tem o mesmo sentido dos outros modos de falar que nos descrevem Deus humanamente. Porque, considerando que a nossa debilidade não alcança e não toca a Sua altura, a descrição que dele se faz para nós subordina-se à nossa capacidade, para que a possamos entender. Então, o recurso é que Ele seja representado, não pelo que realmente é, mas tal como o sentimos. Embora Ele seja imune a toda perturbação, diz a Escritura que Ele se ira contra os pecadores. Por isso, quando ouvimos que Deus está irado, não devemos imaginar que haja alguma comoção nele, mas, antes, devemos entender que essa expressão é tomada do nosso sentimento, porque Ele mostra a aparência de uma pessoa irada quando exerce o rigor do Seu juízo.
Também, pela palavra penitência, ou arrependimento, devemos entender simplesmente uma mudança das obras de Deus em função do fato de que os homens, mudando as suas obras, testificam que elas lhes desagradam. Por isso, então, como toda mudança ocorrida entre os homens é correção do que desagrada, e a correção vem pelo arrependimento, por essa razão, a mudança que Deus faz em Suas obras é representada pelo nome de arrependimento. Tenha-se em mente, porém, que o conselho e propósito de Deus não volta atrás, a Sua vontade não se desvia e o Seu amor não muda; a verdade é que o que Ele, desde toda a eternidade, provou, aprovou e decretou, vai constantemente pondo em execução, sem nada variar, embora pareça haver ali uma diversidade ou alteração súbita. Porquanto, narrando a Escritura que a calamidade anunciada por Jonas aos habitantes de Nínive lhes foi perdoada, e que a vida de Ezequias foi prolongada depois de haver ele recebido a mensagem de que morreria, com isso ela não demonstra que Deus ab-rogou os Seus decretos. Os que assim pensam fazem tresloucada violência às proclamações bíblicas; estas, conquanto sejam redigidas simples e concisamente, todavia contêm uma condição tácita, como se pode ver pelo objetivo a que se destinam.
Explicação de uma condição implícita
Vejamos: Por que foi que Deus enviou Jonas aos ninivitas para lhes predizer a ruína da sua cidade? Por que anunciou, mediante Isaías, a morte de Ezequias? Pois a verdade é que Ele bem podia dar-lhes cabo sem enviar-lhes nenhuma mensagem. Então Ele tinha outro objetivo, que não o de querer fazê-los saber da sua ruína muito tempo antes da sua ocorrência. É que Deus não queria que eles perecessem, mas, sim, que se emendassem para não perecerem. Por que Jonas profetizou que Nínive seria destruída quarenta anos depois? Para que não fosse destruída. Por que foi cortada a Ezequias a esperança de viver mais longamente? Para que orasse rogando a Deus vida mais longa. Quem é que agora não vê que com tais ameaças Deus quis mover ao arrependimento aqueles que foram ameaçados por Ele, para evitarem o juízo que tinham merecido por seus pecados? Se isso é verdade [como certamente é], a ordem natural nos induz a suprir o texto, explicitando uma condição tácita, implícita, não expressa nos anúncios feitos.
Comprovação com mais alguns exemplos bíblicos
O que acabamos de dizer pode ser confirmado por outros exemplos semelhantes.
Quando o Senhor repreendeu o rei Abimeleque por ter raptado a mulher de Abraão, empregou estas palavras: “Vais ser punido de morte por causa da mulher que tomaste, porque ela tem marido. Agora, pois, restitui a mulher a seu marido, pois ele é profeta e intercederá por ti, e viverás; se, porém, não lha restituíres, sabe que certamente morrerás, tu e tudo o que é teu” (Gênesis 20:3,7).
Notemos como na primeira parte Deus faz uso de grande veemência para encher de medo o coração do rei, a fim de melhor induzi-lo a cumprir o seu dever; e que, depois, Ele explica claramente a Sua intenção. Visto que as outras passagens têm o mesmo sentido, não se pode inferir delas que Deus revogou o Seu predeterminado conselho e propósito suspendendo o que antes havia publicado. Porque, muito ao contrário, Ele abre caminho para o Seu conselho e ordenação eterna quando induz ao arrependimento aqueles que deseja perdoar, anunciando-lhes as penas que lhes sobrevirão se perseverarem em seus erros e vícios. O que acontece longe está de ser que Ele muda Sua vontade, e nem mesmo Sua palavra, mas sim que Ele não explica letra por letra a Sua intenção. Todavia, esta é fácil entender. Permanece, pois, firme esta declaração de Isaías (Isaías 14:27): “O Senhor dos Exércitos o determinou; quem, pois, o invalidará? A sua mão está estendida; quem, pois, a fará voltar atrás?”
Extraído das Institutas da Religião Cristã (Edição Especial), Editora Cultura Cristã.
Sobre o estoicismo:
O “Fatalismo Estoico” considerando que todos os eventos são inevitavelmente guiados à sua consumação por forças internas; – “tudo acontece por necessidade do destino” [Justino de Roma, Segunda Apologia, 6: In: I e II Apologia: diálogo com Trifão, São Paulo, Paulus, 1995. (Patrística, 3), 97] –, ordena ao homem que aceite o destino porque é impossível resistir ao curso dos acontecimentos. Por isso, para o filósofo estoico, a virtude consiste numa total indiferença, apatia, renúncia a todos os bens do mundo que não dependem de nós. Tudo está fatalmente determinado, logo, cabe-nos apenas o controle das paixões e total resignação.
Calvino (1509-1564), como nós Reformados, longe de entender que o cristão é um fatalista, escreveu antes de Leibniz, em 1559, mostrando que o conceito de Providência nada tem a ver com o conceito estoico.
“Aqueles que desejam suscitar ódio para com esta doutrina, caluniam-na de ser o dogma do destino dos Estoicos....” [J. Calvino, As Institutas, I.16.8]. Em outro lugar: “Longe estará do coração dos cristãos aceitar o todo e distorcido consolo dos filósofos pagãos que tentam se endurecer contra as adversidades, culpando a si mesmos da sorte e do destino.” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 44].
Um bom exemplo do pensamento combatido por Calvino temos em seu contemporâneo, o filósofo florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), considerado o fundador do pensamento político moderno. No Príncipe (1513), Maquiavel ensina que 50% de nossa vida e destino estão entregues à sorte ou fortuna, divindade cega. Notemos que aqui Maquiavel substitui a palavra Providência por Fortuna; no entanto, mais do que a palavra, ele modifica o conceito; a Fortuna em Maquiavel é uma forma secularizada da Providência. A outra metade, é comandada pelo nosso livre arbítrio. (Ver: N. Maquiavel, O Príncipe, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. IX), 1973, Cap. XXV, p. 109 e XXVI, p. 114). Deste modo, os homens podem conquistar parte da sorte pela “virtù”, mas nunca opor-se a ela, aos seus desígnios. No entanto a sorte é bastante passional: “Estou convencido de que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher, e para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é geralmente reconhecido que ele se deixa dominar mais por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos circunspectos, mais ferozes e com maior audácia a dominam.” (N. Maquiavel, O Príncipe, Cap. XXV, p. 111.). Equivocadamente confiante no poder do homem, propõe o escape de um fatalismo rígido, sugerindo a conquista de parte do território governado pela fortuna, pela “virtù”, que é a capacidade de liderança e de grandes feitos. O caminho de que dispomos é a “oportunidade”. Compete ao príncipe - a exemplo de Moisés, Ciro, Teseu, entre outros - usar do seu livre arbítrio [“Deus não quer fazer tudo, para não nos tolher o livre arbítrio e parte da glória que nos cabe.” (Maquiavel, O Príncipe, Cap. XXVI, p. 114)] – para não entregar o seu futuro simplesmente à sorte. “.... digo que se vê hoje o sucesso de um príncipe e amanhã a sua ruína, sem ter havido mudança das suas qualidades. Creio que a razão disso, conforme o que se disse anteriormente, é que, quando um príncipe se apóia totalmente na fortuna, arruina-se segundo as variações daquela. Também julgo feliz aquele que combina o seu modo de proceder com as particularidades dos tempos, e infeliz o que faz discordar dos tempos a sua maneira de proceder.” (N. Maquiavel, O Príncipe, Cap. XXV, p. 110). Percebemos o quão diferente é conceito de Calvino a respeito da Providência de Deus: “Notamos que a maioria atribui à fortuna o que deveria ser atribuído à providência de Deus.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 46.8), p. 336].