Por que um artigo
dessa natureza? Se o leitor for a
uma livraria procurar algo a respeito do assunto em nossa língua, provavelmente não irá encontrar muita coisa. É incomum achar essa matéria na literatura evangélica, mesmo em inglês. Essa é, em parte,
a razão deste artigo. Contudo,
não é a única, como se poderá
observar no decorrer destas notas.
Em tempos de tanta confusão teológica por que passa a igreja cristã neste final do século XX, não é aconselhável professar o cristianismo sem afirmar com clareza aquilo em que
se crê. A igreja de Cristo sempre foi uma igreja confessante, porque a genuinidade da nossa fé tem que ser evidenciada naquilo em que cremos e confessamos. Temos que ter
a ousadia de afirmar clara e abertamente e, de preferência, de forma escrita, as coisas
em que cremos. Reconheço que vivemos numa era que rejeita a noção credal ou confessional, mas esta posição tem que ser repensada. Tantas são as heresias e as
tentativas de assalto à fé genuína que tornam-se necessárias a formulação e a confissão daquilo em que cremos, para que a igreja, na sua inteireza, não venha a ficar perdida, lançada de um lado para outro
por quaisquer ventos de doutrina.
Em todas as épocas os crentes foram chamados a expressar a sua fé de uma forma confessional. É importante nos lembrarmos de que não é necessária a adesão a um credo para que uma pessoa se torne cristã, mas, uma vez cristã, a pessoa tem que confessar a sua fé. Essa confissão é, em algum grau, um credo.
I. A Definição de Credo e Confissão
Philip Schaff diz que "um credo, regra de fé ou símbolo é uma
confissão de fé para uso público, ou uma forma de palavras colocadas com
autoridade... que são consideradas como necessárias para a salvação, ou, ao
menos, para o bem-estar da igreja cristã."[1] Esta definição parece contradizer a
sentença do parágrafo anterior, mas obviamente devemos entender que Schaff está
falando da necessidade de confissão antes que da necessidade da elaboração
escrita de um credo.
Um credo é uma
elaboração científica daquilo que cremos com base na Escritura Sagrada. "Um credo ou regra de fé é uma afirmação concisa daquilo que alguém
deve crer a fim de ser um cristão."[2] Se alguém se confessa cristão, tem que possuir um conjunto de verdades devidamente elaboradas em que professa crer. É necessário que o cristão confesse a sua fé de forma que outros venham a saber em que ele crê. É uma insensatez professar fé em Cristo sem
saber o conteúdo do que se confessa.
Paul Wooley definiu credo como "uma série de afirmações conectadas que são cridas como verdadeiras e que são derivadas de fontes de informação
tais como os registros dos acontecimentos na história."[3]
A definição de uma confissão não difere basicamente da de um credo, senão na forma.
Uma confissão contém mais ou menos os mesmos elementos de um credo, mas de forma bem mais elaborada, com detalhes
que um credo não possui, por ser mais conciso. Uma confissão aborda mais assuntos do que um credo, e os apresenta de forma mais sistemática. Um credo sempre começa como credo ou credemus ("eu creio" ou "nós
cremos"), enquanto que as confissões
geralmente não possuem essa característica.
II. A Importância da Historicidade da Fé
Os credos são
extremamente importantes para os
cristãos que vivem no limiar do terceiro milênio, porque estes não são essencialmente diferentes dos crentes que viveram nos primeiros séculos da era cristã. Para os cristãos da era patrística, os credos foram absolutamente necessários para a definição teológica e para a vida cristã prática. A nossa
fé tem que possuir
raízes históricas, e os credos
nos ajudam a entendê-las.
Por exemplo, o Credo Apostólico dá-nos informações sobre quem foi Jesus Cristo. Ali se diz que ele nasceu da virgem Maria, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, ressurgindo dos mortos ao terceiro dia. Esses todos são dados históricos. Eles são uma afirmação de nossa fé histórica. Se a redenção trazida por Cristo não é um fato histórico, como alguns teólogos contemporâneos chegaram a afirmar, então nós não
somos realmente redimidos.
Se a queda no Éden não foi um fato histórico, então não existe corrupção nem culpa. Se negamos a historicidade do Éden haveremos de negar a historicidade da redenção em Cristo e a autoridade do próprio Cristo, que creu nas afirmações do Gênesis. É absolutamente essencial que levemos em conta as raízes históricas de nossa fé.
Na mente de uma porção de teólogos e de cristãos individuais, as coisas mencionadas acima são meras idéias, não fatos. Se o pecado humano é uma mera ideia, é não um fato, a salvação que se diz ter sido trazida por Cristo também o é. Mas a escravidão ao pecado é algo tão real que ninguém pode negar, nem mesmo os homens mais ímpios, e a redenção trazida por Cristo é uma realidade histórica em nossa vida pessoal, e é absolutamente inegável. Que o digam os que foram alcançados por ela! Por essa razão, precisamos confessá-la.
Se a nossa fé não tem
raízes históricas, ela perde o seu fundamento. Uma fé
sem essas raízes é docética, isto é, solta no espaço,
sem qualquer ligação com o real, e nada tem a
ver conosco. Os credos e as confissões sempre nos situaram historicamente com respeito a pessoas e eventos, especialmente os relacionados com Jesus Cristo, o Senhor e Redentor. Deus, que é eterno e a-histórico, fez com que seu Filho se tornasse um personagem da história para poder ser um de nós, um membro de nossa raça, a fim de que pudesse realizar a obra da redenção em nosso favor. Por essa razão, a Escritura
sempre nos situa no tempo e na história (falando, por exemplo, de Belém no tempo de Herodes), e os credos fazem
exatamente o mesmo.
Portanto, os credos e confissões da igreja cristã sempre nos reportam às origens e ao desenvolvimento histórico de nossa fé. Como já vimos anteriormente, primeiro vieram os credos, expressões resumidas da fé cristã. Posteriormente, vieram as confissões, que foram expressões mais elaboradas, sendo ambos, credos e confissões, resultado direto das controvérsias vigentes na época em que foram preparados. Nenhum de nós pode dizer, em sã consciência, da falta de importância dos credos e confissões nos tempos modernos, embora o tempo presente nos convide a isso. É um tempo de anti-dogmatismo e de aversão a afirmações confessionais. No entanto, os genuínos cristãos sempre se importaram com a historicidade da sua fé. Nisso também não sejamos diferentes daqueles com quem queremos ser parecidos!
III. A Origem Eclesiástica dos Credos e Confissões
Os credos tiveram a
sua origem nos primeiros séculos da igreja cristã, especialmente quando das
controvérsias dos séculos IV e V. O primeiro credo conhecido historicamente foi
o chamado Credo Apostólico, que provavelmente
tenha sido formulado no segundo século, mas sofreu algumas alterações até o
século VI, quando algumas coisas lhe foram acrescentadas. Não conhecemos a sua
verdadeira origem, nem quem foram os seus autores.
Há outros credos na história da igreja dos quais sabemos bastante, embora o espaço aqui não nos permita dizer muito sobre eles. No ano 325, cerca de 300 bispos formularam um credo no Concílio de Nicéia, na Ásia Menor, que tratou das controvérsias cristológicas relacionadas à trindade e condenou as heresias de Ário. Depois houve o Credo de Constantinopla (381), elaborado por 150 bispos, que é popularmente conhecido como o "Credo Niceno" simplesmente por refletir o ensino de Nicéia. Todavia, ele vai além dos ensinos de Nicéia, pois afirma a plena divindade do Espírito Santo. O Credo de Calcedônia (451) trata especificamente das duas naturezas de Jesus Cristo, sobre as quais a igreja pouco acrescentou posteriormente, em virtude da precisão das suas idéias. Além desses primeiros credos, vários outros apareceram posteriormente, expressando a fé da igreja e dando-lhe um norte teológico para fazer face às heresias.
Somente bem mais
tarde, na época da Reforma, é que apareceram as confissões de fé,
que trataram da doutrina cristã de um modo bem mais elaborado que os credos. Inicialmente surgiu a Confissão de Augsburgo (1530), de tradição luterana. Depois vieram as de cunho calvinista: a Segunda Confissão Helvética (1566), a Confissão Escocesa (1560) e a Confissão de Fé de
Westminster (1646), que foi a
última das grandes confissões e certamente a que veio a apresentar as definições mais precisas da doutrina
reformada. Houve outras confissões de menor importância histórica, além dos catecismos que formaram a base doutrinária das igrejas, especialmente as de cunho luterano e calvinista.
IV. A Origem Escriturística dos Credos
O cristianismo é a
única grande religião do mundo que tem esboçado o conteúdo de sua fé na forma
de credos. Um credo não é a Palavra de Deus aos homens, mas é composto de
palavras de homens a respeito de Deus, uma resposta humana à revelação divina.
Uma afirmação credal é a primeira elaboração de teologia feita pelos cristãos.
Todavia, os credos não precisam ser necessariamente escritos, pois nos começos
do cristianismo a fé era expressa oralmente aos catecúmenos ou professada por
eles no batismo, muito antes de eles serem colocados em forma escrita.
O começo das
formulações confessionais está
evidenciado nas afirmações proto-credais das páginas do Novo Testamento. O eminente historiador Schaff disse que "os credos nunca precedem a fé, mas a pressupõem."[4] A fé elaborada pela igreja é apenas uma exteriorização daquilo que os cristãos creem no coração. Se crêem com o coração, disse Paulo, eles têm que confessar com a boca (Rm
10.9-10). Schaff diz ainda que os credos "emanam da vida interior da igreja, independentemente da ocasião externa... Em um
certo sentido pode se dizer que a igreja cristã nunca ficou sem um credo."[5]
Parece que as formulações doutrinárias já eram comuns no tempo dos apóstolos. O gérmen dos credos está afirmado nos escritos apostólicos. Judas, por exemplo, faz referência direta a algum tipo de formulação existente no seu tempo. Ele fala da "fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (v. 3). Essa fé é o conjunto de verdades reveladas que estavam de alguma forma sistematizadas e eram aceitas pelos crentes de então. No v. 20 Judas fala da edificação dos crentes na fé santíssima, o que pressupõe a existência de uma formulação pré-credal. Em contraste com as doutrinas errôneas ensinadas no seu tempo (1 Tm 1.3; 6.3), Paulo fala a Timóteo (e a Tito) a respeito da "sã doutrina" (1 Tm 1.10; 4.6; 2 Tm 4.3; Tt 2.1), que ele devia ensinar (2 Tm 4.2-3) e pela qual deveria zelar (1 Tm 4.16; 6.1). A pregação da "palavra fiel" deve ser "segundo a doutrina" (Tt 1.9), e a doutrina deve ser "ornada" pelo proceder dos crentes (Tt 2.10).
No período apostólico já havia algumas doutrinas elaboradas que o escritor aos Hebreus chama de "princípios elementares da doutrina de Cristo" (ver Hb 6.1-3). Ele também expressa a sua preocupação com a entrada de "doutrinas várias e estranhas" no seio das igrejas (Hb 13.9), que exigiam a definição da verdadeira doutrina. Portanto, nos tempos do Novo Testamento já se via a grande importância de se crer corretamente, isto é, a importância de permanecer na doutrina ensinada por Cristo (ver 2 Jo 8-11).
Os escritores bíblicos usam outros sinônimos para doutrina nos seus escritos: fé (Gl 1.23; Fp 1.27; Cl 2.7; 1 Tm 1.19-20; Tt 1.13; Judas 3); tradição, significando a verdade passada adiante (1 Co 11.2,23; 15.3; 2 Ts 2.15); padrão das sãs palavras (2 Tm 1.13); bom depósito (1 Tm 6.20; 2 Tm 1.14); a palavra que vos foi evangelizada (1 Pe 1.25). Essas doutrinas já eram elaboradas, embora não exaustivamente e, de alguma forma, confessadas publicamente pelos crentes do Novo Testamento.
Contudo, a essa altura, não se pode falar que havia credos formalmente elaborados na igreja do Novo Testamento, mas a ideia de um credo já estava perfeitamente a caminho. Segundo Bruce Demarest, "Paulo em Rm 10.9-10 esboça três elementos essenciais de uma confissão que salva: crença na divindade de Cristo, sua morte expiatória, e sua ressurreição."[6]
Mesmo não havendo uma elaboração propositada, podemos perceber os fragmentos de um credo em alguns escritos do Novo Testamento, especialmente os elementos
relacionados com a obra redentora de Jesus Cristo:
Antes de tudo vos entreguei o que também recebi: Que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, Que foi sepultado, Que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas, E, depois, aos doze. Depois foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez.... Depois foi visto por Tiago, E, então, por todos os apóstolos, E, finalmente, por mim... (1 Co 15.3-8)
Parece-nos que este texto revela algum propósito de catequese ou pregação. Kelly justifica tal possibilidade dizendo que este sumário "dá a essência da mensagem cristã numa forma concentrada."[7] (Ver outros exemplos similares em Rm 1.3-5; 8.34; 1 Co 8.6; 1 Tm 3.16; 1 Pe 3.18-22.)
Um texto que fala de uma espécie de credo-confissão está patente em 1 Tm 6.13-14. Provavelmente essa confissão preparava as pessoas para o batismo. Um texto semelhante
é 2 Tm 4.1 (ver também Rm 4.24).
Esses exemplos não
devem ser considerados credos no sentido usual do termo, mas parecem indicar a presença dos elementos de um credo. Philip Schaff estava absolutamente certo quando afirmou que "num certo
sentido, a Igreja Cristã nunca existiu
sem um credo."[8]
>>>continua
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Notas
[1] Philip Schaff, The Creeds of Christendom (Grand Rapids: Baker, 1990 ), vol. 1, 3. (Minha tradução).
[2] Bruce A. Demarest, "Christendom’s Creeds: Their Relevance in the Modern Word," Journal of the Evangelical Theological Society 21 (December 1978), 345.
[3] Paul Wooley, "What is a Creed For? Some Answers from History," em Scripture and Confession, ed. John H. Skilton (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1973), 96.
[4] Schaff, The Creeds of Christendom, 5.
[5] Ibid.
[6] Demarest, "Christendom’s Creeds," 345.
[7] J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds (New York: Longman, 1972), 17.
[8] Philip Schaff, The Creeds of Christendom (New York, 1919), l.5.
Extraído de: