Muita gente conhece a história bíblica de José, um dos filhos de Jacó que foi, por causa da inveja dos irmãos, vendido como estravo ao Egito. Pouca gente olha para o lado político da história. José foi abençoado por Deus e acabou ajudando Faraó a combater uma crise econômica, guardando cereal durante a época de prosperidade para usar na época de “vacas magras”. José, aliás, foi nomeado governador da terra – uma espécie de “planejador central” da economia. Com isso, ele expandiu imensamente o poder de Faraó às custas do povo egípcio e dos estrangeiros que vinham em busca de alimento durante a crise. De escravo, José passou a ser o escravizador do Egito.
O relato bíblico detalha que José de fato exerceu uma política de “estatização” de quase toda propriedade privada na terra.
E não havia pão em toda a terra, porque a fome era muito grave; de modo que a terra do Egito e a terra de Canaã desfaleciam por causa da fome. Então José recolheu todo o dinheiro que se achou na terra do Egito, e na terra de Canaã, pelo trigo que compravam; e José trouxe o dinheiro à casa de Faraó. Acabando-se, pois, o dinheiro da terra do Egito, e da terra de Canaã, vieram todos os egípcios a José, dizendo: Dá-nos pão; por que morreremos em tua presença? porquanto o dinheiro nos falta. E José disse: Dai o vosso gado, e eu vo-lo darei por vosso gado, se falta o dinheiro. Então trouxeram o seu gado a José; e José deu-lhes pão em troca de cavalos, e das ovelhas, e das vacas e dos jumentos; e os sustentou de pão aquele ano por todo o seu gado. E acabado aquele ano, vieram a ele no segundo ano e disseram-lhe: Não ocultaremos ao meu senhor que o dinheiro acabou; e meu senhor possui os animais, e nenhuma outra coisa nos ficou diante de meu senhor, senão o nosso corpo e a nossa terra; Por que morreremos diante dos teus olhos, tanto nós como a nossa terra? Compra-nos a nós e a nossa terra por pão, e nós e a nossa terra seremos servos de Faraó; e dá-nos semente, para que vivamos, e não morramos, e a terra não se desole. Assim José comprou toda a terra do Egito para Faraó, porque os egípcios venderam cada um o seu campo, porquanto a fome prevaleceu sobre eles; e a terra ficou sendo de Faraó.
(Gênesis 47:13-20)
Ao final do processo, todo o dinheiro era de Faraó, todo o gado e toda a terra. A exceção prova a regra: todas as pessoas famintas por causa da crise abriram mão de sua propriedade em troca do cereal e das sementes que o governo egípcio lhes proporcionava, exceto os sacerdotes, pois estes sempre foram mantidos pelo governo e sempre tiveram acesso privilegiado ao alimento (v.22). Logo que obteve posse de toda a terra, o governo egípcio a “emprestou” ao povo e ordenou que 20% da colheita produzida com os grãos que foram dados deveria ir de volta para o cofre governamental – uma espécie de “imposto de renda” (v.23-24).
Alguns tem dito que essa forma de socialismo é a maneira correta e bíblica de se proceder com a economia. Será? Será que essa história de José é normativa para os nossos dias? Ou ao menos para um governo cristão? A bíblia parece mais descritiva, menos normativa e até mesmo negativa em relação à política econômica de José. Ela deixa claro que José estava escravizando o povo em nome de Faraó:
E disseram: A vida nos tens dado; achemos graça aos olhos de meu senhor, e seremos servos de Faraó. José, pois, estabeleceu isto por estatuto, até ao dia de hoje, sobre a terra do Egito, que Faraó tirasse o quinto; só a terra dos sacerdotes não ficou sendo de Faraó.
(Gênesis 47:25-26)
“Seremos servos de Faraó”. Além do mais, alguns manuscritos antigos incluem essa informação também no versículo 21: “Quanto ao povo, ele [José] os escravizou de uma a outra extremidade da terra do Egito”. Independente da escolha de manuscritos, a informação está lá: a ideia de escravidão e servidão se refere tanto ao “imposto de renda” de 20%, como ao controle e planejamento central da economia pelo governo egípcio. A pergunta, então, passa a ser: o político cristão e bíblico é chamado a escravizar a população inteira e a centralizar a economia dessa forma?
A resposta, por agora, já deve ser clara o bastante: não. Em primeiro lugar, por causa desse tom negativo em que o episódio é relatado. A servidão e a escravidão, a não ser no sentido metafórico ou religioso (“servir a Deus”), têm um tom negativo e melancólico quando mencionadas na bíblia, e aqui não é diferente.
Em segundo lugar, a história de José não é sobre sua habilidade de governante, ou mesmo sobre a crise econômica e como ela foi resolvida. Precisamos de voltar alguns capítulos para ver o foco central da história de José no Egito. Lembre-se que a casa de Jacó por algum tempo tinha, por causa de vários pecados (Gn. 37:3; 38), parado de receber a revelação de Deus. O único a receber era José, por meio de sonhos. Um desses sonhos falava do pai de José e de seus irmãos se curvando diante dele, em respeito (Gn. 37:7-11). Quando José, portanto, se torna o governador do Egito, aquele sonho se cumpre.
Mais do que isso, o ponto da história é que José resgata sua família da miséria e da fome. É preciso levar a família portadora da promessa divina até o Egito por um tempo, para que seja preservada. José é quem lidera esse processo (Gn. 45:8-9). Mas o Egito é preparado pelo próprio José, que leva a revelação de Deus àquele povo (Gn. 39:8-9; 40). Através de seus sonhos, a palavra de Deus chega até mesmo a Faraó e o alerta da crise econômica que viria (Gn. 41). Foi a palavra de Deus que colocou José na condição de governador do Egito.
Isso explica por que o socialismo de José funcionou naquela ocasião. Um dos motivos do mau funcionamento de uma economia socialista, centralmente planejada, é que, mesmo pressupondo a boa-vontade de todas as pessoas, ela não opera de forma racional. Aliás, ela acaba prejudicando a disponibilidade de bens e serviços demandados.
A economia é sempre bem complexa, e cada pessoa faz pequenas escolhas todo dia que causam um tremendo impacto no resto da sociedade. Numa economia centralmente planejada, essas escolhas são feitas por um comitê burocrático que dita o que vai ser produzido e vendido, para onde vai, e o que cada pessoa pode consumir ou usar como matéria-prima. Ou seja, todo o planejamento espontâneo baseado no conhecimento disperso por toda a sociedade passa a ser feito por um número bastante limitado de “iluminados” que ditam o rumo que a economia deve tomar. Para assegurar que suas diretrizes serão cumpridas, esses “iluminados” contam com o poder de coerção e compulsão do governo civil.
O sistema socialista pressupõe que uma equipe de planejadores centrais é mais “racional” que toda a sociedade junta. Pressupõe que é possível concentrar todo o conhecimento disperso da sociedade na mente dos “iluminados” que ditam as regras da economia. A equipe de planejamento central é um time de aspirantes à onisciência de Deus.
No Egito, José interpretou um sonho em que Deus revelou a oferta e demanda de cereais, e o tempo e local onde essa oferta e demanda se manifestariam. Deus lhe mostrou que haveria uma época de prosperidade e uma de crise e de “vacas magras” (Gn. 41:15-32). Com base em toda essa informação, José sugeriu um “plano econômico” que salvou a população local e vizinha da fome absoluta e, ao mesmo tempo, transferiu a renda e a propriedade do povo para os cofres de Faraó (Gn. 41:33-37, 56-57). José conseguiu planejar a economia porque o próprio Deus lhe deu a informação necessária.
Mesmo o socialismo de José do Egito, contando com a revelação divina sobre os detalhes da economia no futuro próximo, não foi além da mera sobrevivência. O ponto da história inteira é enfatizar a revelação de Deus através de José. O ponto deste episódio específico é mostrar que tudo depende de Deus (e não de José, ou do “Ministério da Fazenda” de Faraó).
Assim, longe de ser uma apologia ao socialismo e ao intervencionismo na economia, o episódio das “vacas magras” nos mostra, primeiro, a sua imoralidade e, em segundo lugar, a sua limitação intrínseca. O socialismo é moralmente condenado quando a bíblia o rotula, nesta história, de “servidão” e “escravidão”. Os seus limites intransponíveis são destacados quando a bíblia deixa claro que José dependeu da revelação divina para que seu plano fosse implementado (Gn. 41:16, 25, 28, 38-39).
Aprouve a Deus ensinar a dependência total que devemos ter dEle e o cuidado que Ele tem por Seu povo através das “vacas magras” e do resgate que Ele enviou através de José. Porém, o normal não é pressupor que Deus tem revelado dia após dia ao gabinete de governo o rumo que a economia deve tomar. O normal é pressupor que precisamos de um sistema que deixe o conhecimento complexo e disperso em toda a sociedade ser livremente utilizado na produção e consumo de bens e serviços. Ou seja: o normal é pressupor que ninguém no governo é onisciente.
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