domingo, 5 de junho de 2016

O ELEITO DE DEUS: LUTERO E A REFORMA PROTESTANTE [Século XVI] (por Raniere Menezes)

Bookmark and Share Bookmark and Share
Lutero afixando as suas teses publicamente.
Em 2017 será o ano comemorativo dos 500 anos da Reforma Protestante. Todo livro de história relata que Martinho Lutero rompeu com a Igreja Católica Romana em 1517 e que o protestantismo nasceu aí, que foi um movimento no qual a Igreja Ocidental se dividiu entre Protestantes e Católicos, mas esta ruptura foi reflexo de uma ruptura maior que aconteceu no contexto do século XVI, as estruturas sociais e tradicionais da época estavam em plena mudança e transformação. E estas devem ser entendidas para uma melhor compreensão da Reforma Protestante. Lutero era um homem do seu tempo, e para entender melhor o seu impacto na época, e através desses 500 anos, é preciso se aproximar mais do contexto histórico da Reforma.

A Reforma Protestante é um conjunto de eventos que envolvem um movimento gradual de secularização da sociedade. Desde então se fragmentou, havendo logo de início uma divisão entre Luteranos e Reformados. Embora ambos tenham direcionado um poderoso foco teológico trazendo luz para dois grandes temas importantes da História da Igreja – Cristo Jesus (Cristologia) e a importância das Escrituras Sagradas como autoridade máxima, acima da Igreja e da Tradição –,  a Reforma foi um movimento da PALAVRA. Apesar de tantas controvérsias ao longo dos séculos sobre as motivações da Reforma, podemos afirmar que uma ampla força, sem dúvida, foi teológica. A indignação de Lutero era primariamente teológica, depois, logo a seguir, moral (a corrupção do clero romano). Quando os papistas começaram a vender “livramento do purgatório”, estavam barganhando a graça de Deus e desvalorizando a morte de Cristo. Lutero não admitia que a graça de Deus se transformasse numa troca financeira. Este foi o ponto de partida. E os debates gerados a partir daí trouxeram a centralidade de Cristo para o recém-nascido movimento da Reforma Protestante. A graça de Deus em Cristo dominou toda teologia, catecismos, literatura e liturgias da época. E também dominou toda comunicação do Evangelho aos leigos. A grande teologia de Lutero foi a Teologia da Cruz, o Cristo crucificado no Calvário. Enquanto o Romanismo obscurecia o entendimento do povo com suas missas em latim, confessionários, penitências e indulgências.

Podemos dizer que Lutero foi um grande homem de Deus? Sim. Que cometeu grandes erros (também!), mas que foi um gigante pelo “simples” fato de colocar Cristo no centro de toda produção da Reforma Protestante. Não só Lutero, mas todos os Reformadores da época foram corajosos em atacar os abusos eclesiásticos, teológicos e morais do seu tempo, e guiar o povo para Cristo Jesus, em linguagem comum da sua região (não em latim!). Muitos pagaram o preço com a própria vida. 
Por que Lutero não sofreu o martírio como outros anteriores a ele? Uma explicação teológica: Porque Deus como o Senhor da História preparou todo o cenário para a Reforma e preservou sua vida. A Reforma incorpora muitos elementos: teológicos, políticos, sociais, culturais e econômicos. É preciso tentar se aproximar de alguns desses fatores para entender melhor. O Deus dos Reformadores é o Deus Soberano que controla todas as coisas, e este Deus ofereceu bases sólidas para que homens escolhidos influenciassem a Igreja no sentido de trazer Cristo Jesus para o centro da vida religiosa do seu tempo.

Neste período destacam-se os seguintes aspectos contextuais da Reforma:

A CRISE DO SISTEMA FEUDAL



Entre os séculos XIV e XVI, no final da Idade Média, uma das mais marcantes transformações foi a crise do feudalismo. O feudalismo era um sistema econômico, político e social fundamentado na propriedade sobre a terra. Esta pertencia ao senhor feudal que cedia uma porção dessa terra ao vassalo em troca de serviços ocasionando uma relação de dependência. Era uma época de grandes senhores de terras e servos, e a Igreja Católica era mais poderosa do que em qualquer época, pois possuía muitas terras. Some-se isso à ascendência da burguesia protagonista conquistando o espaço deixado pela crise feudal e aos acontecimentos revolucionários que antecederam os séculos XV e XVI, como por exemplo, a dizimação de populações por causa de doenças como a Peste Negra. Uma pandemia de peste bubônica que assolou a Europa durante o século XIV e dizimou milhões de pessoas (mais ou menos um terço da população europeia).

Além disso a última guerra feudal também contribuiu para agravar o quadro da crise feudal. Conhecida como a Guerra dos Cem Anos, foi um dos maiores conflitos da Idade Média, que envolveu duas das principais potências europeias: França e Inglaterra. Apesar do nome, durou mais de um século, pois começou em 1337 e terminou em 1453. Além disso, a guerra não foi um confronto ininterrupto, mas uma série de disputas permeadas por várias batalhas. A guerra dos Cem Anos atravessou eras, ultrapassou o fim da Idade Média e o começo do período moderno. A luta colaborou também para formação dos estados modernos europeus e a queda do feudalismo. Como consequência natural de guerra veio a fome (que também foi ocasionada pela estagnação das técnicas agrícolas aliada ao crescimento excessivo da população), e depois a Europa foi assolada com a peste, que dizimou um terço de sua população, já bastante debilitada pela fome.

O homem religioso da Idade Média não encontrava respostas para o sofrimento, e o que o poder papal oferecia era sobrecarregar o homem com culpa e medo. O que poderia salvar o homem medieval das desgraças e juízo divino? (esta era a angústia de Lutero): Mais e mais confissões aos sacerdotes e indulgências. Esta percepção criou um tipo de indústria religiosa: Por ignorância achava-se que se podia comprar sua salvação através das indulgências, cargos eclesiásticos, imagens de esculturas e relíquias. Neste cenário de abusos religiosos Lutero rompeu com a Igreja Católica.

A EXPANSÃO MARÍTIMA E COMERCIAL, DESCOBERTA DO NOVO MUNDO E ABSOLUTISMO



A expansão marítima dos séculos anteriores, que levou à Descoberta do Novo Mundo, principalmente por Portugal e Espanha (posteriormente vieram a hegemonia da Holanda, França e Inglaterra). Encaminhou-se a uma expansão comercial que trouxe à cena uma burguesia forte e uma economia mais urbana, nascendo então, aos poucos, os mercados nacionais libertos dos obstáculos do sistema feudal. A burguesia então favorecia e se aliava aos reis para combater economicamente a poderosa nobreza feudal ligada a Igreja Católica Romana.

A crescente riqueza burguesa enfraqueceu progressivamente a nobreza feudal. Com esta tendência se fortaleceu o Absolutismo (a concentração de maiores poderes nas mãos dos reis). Era interessante para a burguesia apoiar os reis politica e economicamente, e ideologicamente ela legislava e desenvolvia a ideia política-administrativa-constitucional do Estado Nacional Moderno, sendo que no campo ideológico os reis se fortaleciam pela teorização religiosa de que o rei recebia seus poderes pela “graça divina”. Esta “graça” é o traço marcante da monarquia absoluta de direito divino e aí começa a fragmentação do poder da Igreja católica Romana. A reação do poder papal foi a Imposição da Inquisição, mas isto fortaleceu a Reforma porque esta encontrava-se fortalecida pelo Estado Nacional, pelos nobres protestantes e a burguesia.

A burguesia era fortemente ligada ao comércio e apoiava em parte a centralização do poder real para proteger seus interesses, já a nobreza feudal se enfraquecia cada vez mais com guerras para manter seus territórios. O esgotamento das reservas minerais abalou a produção de moedas afetando inevitavelmente as operações bancárias e o comércio, isto enfraqueceu mais ainda o sistema feudal e fortaleceu a necessidade de transformações socioeconômicas e políticas na Europa Ocidental.

A monarquia absoluta foi fundamentada por teóricos religiosos e não-religiosos pelos séculos XVI e XVII, como por exemplo com: Nicolau Maquiavel (1469-1527), Thomas Hobbes (1588-1679), entre outros menos famosos. Os pensadores posteriores que defendiam o direito divino dos reis que se destacam são: Le Bret (1632), Jean Bodin (1530-1596) e Jacques Bosseuet, considerado o maior teórico do absolutismo. Este afirmava: “Não há poder público sem a vontade de Deus, todo governo, seja qual for sua origem, justo ou injusto, pacífico ou violento, é legítimo.”

O HUMANISMO, RENASCENTISMO E INVENÇÃO DA IMPRENSA



Neste movimento de transformação operou uma Revolução Intelectual muito importante para abrir caminho para a Reforma Protestante: O Humanismo e o Renascentismo. Ambos abalaram as forças da Igreja Católica Romana e da nobreza feudal, diminuindo a supremacia universal da Igreja Católica e fortalecendo os sentimentos nacionalistas, identificados com os reis. A Reforma Protestante reforçava essa identidade nacional desligada do Universalismo Católico predominante. O contexto é interligado. A formação do Estado Nacional e o Absolutismo ligaram-se ao Mercantilismo, que formou um sistema Colonial em que a exploração das colônias possuía um forte objetivo de acumular capitais.

Expansão Comercial e Marítima alargaram os horizontes culturais, o que possibilitou um maior conhecimento da Antiguidade, gerando uma renovação cultural fortalecida pela Imprensa. A impressão de obras literárias clássicas e da época produzidas em larga escala chegava ao povo através da "inundação" que a imprensa causou no continente com uma enxurrada de milhões de livros no começo do século XVI. Com a Imprensa o Humanismo popularizou a Antiguidade Clássica e tornou-se um movimento intelectual de pessoas letradas. A Reforma não podia acontecer sem a Imprensa e sem a grande produção de livros, o que dinamizou o ministério da pregação (fator preponderante para a comunicação do Evangelho ao povo).

Houve uma imensa quantidade de livros impressos, sermões pregados, comentários, panfletos escritos durante a Reforma. “Fica muito claro que ela foi um movimento de palavras – palavras escritas, palavras impressas, palavras faladas”, como escreveu Carl Trueman. Devemos relembrar que a maior parte da população era analfabeta, portanto o maior meio de evangelização e discipulado era a palavra falada.

É interessante notar que Lutero era um monge agostiniano antes da Reforma, e que seu pensamento continuou agostiniano, paulino e humanista. Na época muitos humanistas valorizavam o pensamento de Agostinho, principalmente sobre a Soberania Divina e Predestinação. O Humanismo serviu de ponto crítico para a Reforma em seu início, principalmente pelas traduções em grego, e porque possuía uma vertente voltada para os estudos de antigos textos sagrados e para discussões de temas religiosos.

Renascentismo foi, de certa forma, uma expressão do movimento Humanista nas artes, letras, filosofia, música e ciências. O Absolutismo e a burguesia favoreceram o Humanismo e Renascentismo, e todos esses aspectos beneficiaram direta ou indiretamente a Reforma Protestante.

O MERCANTILISMO


Mercantilismo foi uma política de nacionalismo econômico. E esteve conectado ao Estado Nacional e aos reis. Daí seu lema: “Ouro, Poder e Glória”. Neste quadro de explorações comerciais e coloniais havia o grande investimento econômico para manter os poderes na Europa e o desgaste financeiro dos conflitos marítimos. Inserido em toda essa política de interesses e de poder estava o poder papal também. Essa fragmentação de frentes de poderes estabelecidos voltados para o Novo Mundo ofereceram condições para que os príncipes da Alemanha pudessem resistir a Espanha até que a Reforma ganhasse mais força e apoio para se firmar. A Espanha não podia conter os movimentos pró-Reforma dos príncipes do Norte da Europa e os problemas de Conquista do Novo Mundo de uma só vez. – esta é a tese do Dr Cornélio (Neal) Hegeman --. a expansão dos séculos XV e XVI deslocou o eixo econômico do Mediterrâneo para o Atlântico. As Companhias de comércios multiplicaram-se. As Instituições financeiras foram se aperfeiçoando e desenvolveram-se bancos e bolsas, letras de câmbios e títulos.

Esta expansão atlântica fortaleceu o Estado Nacional, a burguesia mercantil e consequentemente fragmentou o poder papal. A Revolução Comercial e o Capitalismo enfraqueceu de vez o Feudalismo (Sistema este que fortalecia o poder papal). A nobreza feudal foi saindo de cena e dando lugar a uma nova civilização europeia.

O Mercantilismo Europeu em grande parte era abastecido pela pirataria e tráfico de escravos, baseado em conquistas e colonização. Por um lado isso favoreceu o cenário para o surgimento da Reforma, como observou o Dr Cornélio (Neal) Hegeman, por outro lado, muitos protestantes se envolveram na expansão atlântica e colonizações, deixando de lado a oportunidade de expansão missionária evangélica e se envolvendo com guerras por territórios coloniais, piratarias e escravidão. A experiência dessa Era das Explorações além-mar por parte dos países protestantes foi negativa, porém a experiência protestante no Continente Europeu foi em grande parte positiva.

CONTRA-REFORMA

Concílio de Trento
Resistência dos Príncipes do Norte da Europa e Proteção de Lutero se devem em primeiro lugar a Providência de Deus que preparou todo cenário para acontecer a Reforma. Os reformadores anteriores a Lutero foram contidos facilmente porque não havia todo um contexto favorável. Não podemos entender a Reforma Protestante sem essa série de quadros interligados da Época Moderna. 
A Reforma se mesclou com lutas por independência nacional e outras variações sociais. A Igreja Católica Romana naturalmente reagiu a todas essas mudanças e como consequência nasceu a Contra Reforma, cuja representação foi o Concílio de Trento, porém não havia uma única frente de combate para manter o poder romanista, mas muitas frentes socioeconômicas e políticas. A Reforma não estava só, mas atuando em conjunto com novas forças, como já foram citadas até aqui: A burguesia em pleno desenvolvimento, os poderes econômicos e comerciais, o Estado Nacional Absolutista. Era a destruição do sistema feudal que tanto fortalecia a Igreja Católica. A Supremacia Universal do poder papal diminuiu consideravelmente com essas mudanças.

As transformações sociais, políticas e econômicas exigiam mudanças ideológicas. A Reforma chegou no momento certo da história Ocidental. O poder papal teve que ceder espaço para a oposição crescente dos reis protestantes. A nobreza feudal teve de dar lugar para os interesses comerciais da burguesia. O Humanismo nascente combateu e criticou o monopólio intelectual e ideológico da Igreja Católica. Um terrível prejuízo dessa efervescência foram as Guerras de Religião, que derramaram muito sangue na Europa no século XVI. Essas guerras definiram a ferro e fogo os territórios Protestantes e Católicos por gerações. O Luteranismo se espalhou pelos países escandinavos, o Calvinismo se espalhou pela Suíça (e Holanda) inicialmente. Logo surgiram Anglicanismo, Presbiterianismo, Puritanismo e outras denominações.

ROMANOS 1.17


O justo viverá pela fé. A extraordinária verdade escrita pelo Apóstolo Paulo, inspirado pelo Espírito Santo de Deus, iluminou a mente e incendiou o coração de Lutero. Concretizou a verdade de que somente a fé em Cristo através da graça divina pode libertar o homem e lhe dá salvação. A fé depende da vontade de Deus, Deus é soberano. Deus concede graça a quem lhe apraz. 
Dá-se início a uma formulação mais aprofundada e detalhada sobre a DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ, a qual se transformou numa das mais ricas heranças da Reforma Protestante. Para Lutero era apenas o começo da compreensão do edifício sólido dos princípios teológicos dos reformadores e agostinianos. Na base sólida dessa construção Lutero concretizou a TEOLOGIA DA CRUZ: A cruz de Cristo como supremo exemplo para a vida e prática cristã. Obviamente Lutero bebeu da fonte dos Pais da Igreja Primitiva e de alguns Pais da Igreja Medieval, assim como fizeram outros reformadores, e deu a devida importância da aproximação de Cristo com a Igreja.

Lutero encontrou território favorável para avançar em seu ministério. O Sacro Império Romano-Germânico (a Alemanha) foi seu campo de atuação. Esse Império foi a união de certas localidades da Europa na Idade Média, Moderna e Contemporânea, e que estavam sob a autoridade do Sacro Império Romano. Era composto por centenas de pequenos reinos, principados, ducados, condados, e cidades livres imperiais, e outras formas de domínios. As dinastias responsáveis pelo governo do Império foram as mais diversas, o sistema feudal era prevalecente e a nobreza feudal de várias localidades deu apoio à Reforma Protestante, diferentemente de outras partes da Europa. Abaixo dois mapas demonstram geograficamente as divisões políticas e religiosas do período aproximado.



Excomungado pelo Papa Leão X, Lutero recebeu apoio e proteção da nobreza feudal alemã, a qual tinha interesse de descentralizar o poder imperial de Carlos V. A descentralização política dava maior liberdade de ação à Reforma Protestante, mas não sem conflitos e agitações sociais. Gradualmente os príncipes conquistaram o direito de impor sua religião aos habitantes dos seus domínios. 
É importante ter em mente que Igreja e Estado tiveram uma forte conexão de poderes nesse período. Era uma época de grandes incertezas e agitações sociais e desafiar radicalmente toda a estrutura social de uma vez só era como inverter a ordem social política e religiosa. 
De modo geral, os movimentos reformados não eram pacifistas. Era preciso, muitas vezes, guerras e alianças religiosa-militar. As divisões geográficas eram claras e bem estabelecidas.
Este era o mundo dos reformadores. Este era o mundo de Martinho Lutero.

Lutero queimando publicamente bula papal.



Referências:
  • Da Espanhola até Lutero, autores: Dr Cornélio (Neal) Hegeman, Dr Derk Oostendorp, Dr Sidney Rooy. Seminário Mints.
  • Reforma ontem, hoje e amanhã, Carl Trueman, Ed. Puritanos.
  • História das Sociedades, Das Sociedades Modernas às Atuais, autores: Aquino, Denize, Jacques, Oscar, Ed. Record.