As idéias de Calvino, acerca do Estado, têm sido analisadas e discutidas por diferentes intérpretes de origens diferentes e até divergentes. Por isto a sua filosofia política tem sido exaltada, atacada, mal interpretada e ridicularizada, a tal ponto que às vezes caberia a pergunta se o próprio Calvino estava seguro do que, de fato, queria dizer. E um dos problemas de interpretar o pensamento de Calvino em questões políticas, surge ao se relacionar as diversas afirmações que em seus escritos exigem obediência ao Estado e as que insistem não apenas no direito, mas no dever de resistir. Fica então a pergunta: Calvino ensinou a obediência ou a desobediência civil? E quais são as bases nas quais o ensino de Calvino sobre a questão, se sustenta? O presente artigo tem o propósito de entender a relação entre obediência e desobediência civil no pensamento de João Calvino.
I – FOI CALVINO UM CIENTISTA POLÍTICO?
Para compreender as origens da filosofia política de Calvino é necessário, primeiramente, que entendamos que Calvino laborou como um teólogo e pastor, antes que como um cientista político. A despeito de sua formação em direito e de ser o seu primeiro trabalho publicado - um comentário de De Clementia, de Sêneca – uma exposição da ciência política do renascimento, o labor de Calvino foi de fato teológico. Calvino jamais se preocupou em formular uma doutrina política à parte de sua teologia. Obviamente, por ter formulado um sistema teológico abrangente e por ter profunda preocupação pastoral, Calvino tratou em sua formulação teológica de todas as atividades do homem, inclusive a política. É como teólogo e pastor que Calvino precisa ser encarado quando analisamos qualquer aspecto de seu pensamento. Caso contrário nos perderemos em nosso esforço de analisa-lo.
Em segundo lugar precisamos entender Calvino como um homem do seu tempo. A sua teologia foi intimamente relacionada e influenciada pelos acontecimentos e pelo pensamento de sua época. Se por um lado Calvino se esforçava para extrair a sua teologia das Escrituras, por outro lado ele estava preocupado em aplicar as Escrituras às questões do seu tempo.
Em segundo lugar é necessário entender que a marca característica da teologia de Calvino é sua teocentricidade e desta forma todo o seu pensamento é teológico e teocêntrico. Uma das afirmações básicas da doutrina política de Calvino é que o Estado é uma instituição criada e sancionada por Deus, é um instrumento da providência divina. E é a partir desta afirmação básica que devemos compreender tudo que concerne à ordem política, no pensamento do reformador.
II – A OBEDIÊNCIA CIVIL
Segundo Calvino, por causa de sua origem divina, as autoridades civis têm o direito à obediência de todos os homens em geral e dos cristãos em particular. Os magistrados são instituídos por Deus, investidos de autoridade divina e representam a pessoa de Deus em cujo nome agem. Portanto, a autoridade civil é, à vista de Deus, sagrada e legal. “A razão por que devemos estar sujeitos aos magistrados é que eles foram designados pela ordenação divina.”1
Assim devemos obediência às autoridades civis porque o mandato delas vem de Deus. Calvino afirma ainda que ninguém está isento da obrigação da obediência civil.2 Ele mostra improcedência da tese defendida pela maioria dos anabatistas, que negava que os cristãos estivessem sujeitos à obediência ao governo civil.3 Para Calvino, o governo civil, como instrumento da divina providência, é tão necessário à humanidade, como o pão e a água, a luz e o ar. Resistir às autoridades civis significa resistir ao próprio Deus.4
Portanto, mesmo que injusta, imoral ou anti-religiosa, a autoridade civil deve ser respeitada em sua função legítima. Calvino acreditava que Deus pode se servir de magistrados indignos e injustos para, soberana e providencialmente, cumprir a sua boa vontade na história.5
Assim, coerentemente com o seu ensino de que Deus é soberano absoluto sobre absolutamente todas as coisas e fazendo frente ao ensino anabatista de sua época, Calvino ensinou a doutrina da obediência civil.
III – A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Mas foi também a partir da premissa da soberania de Deus que Calvino chegou ao seu ensinou sobre a desobediência civil. Se é por causa de sua origem divina, que as autoridades civis têm o direito à obediência de todos os homens em geral e dos cristãos em particular, também é por ser de origem divina que, para Calvino, o poder político é limitado em sua função e em seu fim. Assim como se opôs à tese dos anabatistas, Calvino se opôs também à tese sustentada por muitos católicos romanos e luteranos, que entendiam que os príncipes possuíam autoridade absoluta e ilimitada. Comentando Romanos 13.4, ele afirma:“Os magistrados podem aprender disto a natureza de sua vocação. A sua administração não deve ser feita em função de si próprios, mas visando ao bem público. Nem têm eles poderes ilimitados, senão que sua autoridade se restringe ao bem-estar de seus súditos. Em resumo são responsáveis diante de Deus e dos homens pelo exercício de sua magistratura. Uma vez que foram escolhidos e delegados por Deus mesmo, é diante deste que são responsáveis.” 6
Desta forma, somente Deus possui autoridade auto-gerada. A autoridade dos magistrados é delegada por Deus, a quem devem prestar contas. Por isto, a obediência devida às autoridades civis é limitada, sobretudo, pela obediência que o homem deve a Deus. Calvino encerra as Institutas com estas palavras:
“Mas, na obediência que temos ensinado ser devida aos superiores, deve haver sempre uma exceção, ou antes, uma regra que se deve observar acima de todas as coisas: é que tal obediência não nos afaste da obediência Àquele sob cuja vontade é razoável que se contenham todos os editos dos reis, e que à sua ordenação cedam todos os mandamentos, e que à sua majestade humilhada seja e rebaixada toda a sua altaneria. E, para dizer a verdade, que perversidade seria, a fim de contentar os homens, provocar a indignação dAquele por amor de quem obedecemos aos homens? Devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre nós, não, entretanto, de outra forma senão em Deus. Se, porventura, os homens ordenam algo que contraria a Deus, de nenhum valor nos deve isto ser.”7
Para Calvino, o dever de submissão às autoridades civis não é ilimitado. Contra os governos injustos é preciso agir pelos meios legais que estão na mão do povo. Por isso, ele entendia que é necessário dar ao povo mecanismos legais para a derrubada de seu governo.
É a doutrina dos “magistrados inferiores” encarregados da salvaguarda do povo e de suas liberdades contra a propensão dos governos à arbitrariedade e à tirania.8 Assim a desobediência civil ao governo injusto, naquilo que ele tem de injusto é, pois, para o cristão, não apenas um direito, é um dever. A obediência às ordens injustas da autoridade civil, contrárias à vontade de Deus, é um crime contra o próprio Deus. Mas a desobediência civil não se justifica senão àquela ordem injusta em particular, naquele ponto específico que o governo tem de injusto, e não ao governo como um todo. O governo injusto retém sua autoridade em tudo que exige de seus governados e que não contrarie sua obediência a Deus.
Calvino ensina também que Deus pode, ocasionalmente, suscitar “salvadores providenciais”, de dentro ou de fora da própria nação. Desta forma, quando a desordem alimentada pelo governo é maior que a injustiça da revolução, a revolução é, de maneira excepcional, justificada. Obviamente isto é, para Calvino, uma exceção e não uma regra que justifique toda e qualquer revolução.
CONCLUSÃO:
A tese de Calvino era a das obrigações e responsabilidades mútuas, divinamente ordenadas entre magistrados e cidadãos. Nesta questão, Calvino se posicionava contra um duplo perigo: o da rebelião do povo contra o governo e o do abuso do poder do governo contra o povo.9 Ele rejeitou ambos os extremos. Para ele a falta de governo conduz à anarquia e ao caos, e o absolutismo monárquico se opõe à verdadeira religião, elevando-se acima do trono do Deus soberano. Assim no pensamento de Calvino o autoritarismo é condenável, ao mesmo tempo em que o princípio de autoridade é desejável.1 João Calvino, Comentário à Sagrada Escritura – Exposição de Romanos,
(São Paulo: Edições Parácletos), 450
2 Ibid
3 Institutas IV, xx, 5
4 João Calvino, Comentário à Sagrada Escritura – Exposição de Romanos,
(São Paulo: Edições Parácletos), 451
5 Institutas, IV, xx, 25
6 João Calvino, Comentário à Sagrada Escritura – Exposição de Romanos,
(São Paulo: Edições Parácletos), 453
7 Institutas, IV, xx, 32
8 Institutas, IV, xx, 31
9 Institutas, IV, xx, 1
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