O clamor por “ética na política” se faz ouvir em toda parte. Todavia, desconstruído pelo relativismo moral e pelo individualismo de nossos dias, qualquer clamor por “ética na política” carece de fundamentos coerentes que lhe permitam fazer pronunciamentos morais e moralizantes. Qual a base para se clamar por honestidade, sensibilidade, verdade, sinceridade, integridade e altruísmo na política se estes são conceitos considerados relativos e subordinados ao pragmatismo individualista, conforme a mentalidade de nossa época? Qual a base para se clamar em prol dos oprimidos, excluídos e sem-nada do nosso país se o ser humano é visto como fruto do meio e da seleção natural, onde sobrevivem os mais aptos, leia-se, os mais espertos, independentemente dos meios que se utilizam para isto?
Em grande parte, este vácuo de absolutos foi gerado pela secularização gradual das culturas e do Estado e pelo abandono no Ocidente dos valores morais e espirituais do cristianismo, que um dia serviram de fundamento para o surgimento das políticas democráticas. O humanismo materialista, centrado no anthropos, não tem conseguido produzir um sistema de valores abrangente que permita uma chamada coerente à ética na política. Não isento aqui a Igreja de culpa. Por muitas vezes ela simplesmente entregou o mundo ao diabo. Como, talvez, aqui no Brasil.
Acredito, todavia, que a fé reformada oferece as condições necessárias para um clamor coerente por ética na política brasileira. A força política da Reforma se fundamenta em diversas premissas sobre Deus e sobre o homem ensinadas na revelação bíblica. São elas: a igualdade de todos os homens diante de Deus, a vocação individual de cada ser humano por Deus e a doutrina do sacerdócio universal de todos os cristãos genuínos. Essa última premissa entende que a autoridade deve ser exercida como uma delegação concedida por Deus ao povo e do povo aos governantes. Uma outra premissa é a doutrina da autoridade das Sagradas Escrituras. Historicamente, a Bíblia foi instrumento eficaz para despertar o povo para estudar, instruir-se e assim gerir seus destinos. E essa Bíblia ensina que as autoridades políticas são constituídas por Deus e respondem diante dele pelo exercício do poder. Conforme o estudioso francês André Biéler, “a democracia não consegue instalar-se nem permanecer lá, onde as premissas religiosas ou filosóficas profundas das populações são estranhas aos princípios evangélicos, iluminados pelo Cristianismo reformado”.
O principal conceito da visão reformada quanto à política é que somente Deus tem poder absoluto. Desse conceito decorrem vários princípios que moldam a visão reformada da política e apontam o caminho da ética. Menciono alguns deles.
1) A fé reformada faz a clara distinção entre Igreja e Estado, mas vê toda autoridade como procedente de Deus (Epístola aos Romanos 13). Os governantes são vistos como servos de Deus neste mundo, para através da política e do exercício do poder promover o bem comum, recompensar os bons e punir os maus. Como tal, haverão de responder diante de Deus pela corrupção na política, pela insensibilidade e pelo egoísmo. A visão do cargo político como sendo uma delegação divina desperta no povo o devido respeito pelas autoridades, mas, ao mesmo tempo, produz nestas autoridades o senso crítico do dever.
2) A fé reformada resiste ao conceito da soberania absoluta do Estado, “um produto do panteísmo filosófico alemão” (Abraham Kuyper, 2002, p. 96) e ao conceito da soberania absoluta do povo, conforme defendido pela revolução francesa. O poder reside em Deus. Tanto o poder do Estado quanto do povo são delegados por ele visando a organização da humanidade. Como conseqüência, a fé reformada defende que nenhum ser humano tem poder sobre outro, a não ser quando delegado por Deus, ao ocupar um cargo de autoridade. Desta forma, a fé reformada se levanta contra toda opressão política à mulher, ao pobre e ao estrangeiro, contra todo sistema político que produza escravidão, contra o conceito de castas e da distinção entre sacerdotes e leigos.
3) Já que o poder não é intrínseco ao ser humano, mas uma delegação divina, deve-se resistir pelos meios corretos a quem exerce o poder político em desacordo com a vontade de Deus. Esta vontade divina para os governantes se encontra claramente expressa na Bíblia, como por exemplo, nos Dez Mandamentos. Entre eles encontramos proposições como “não furtarás”, “não dirás falso testemunho”, “não matarás”. Esses mandamentos refletem absolutos éticos presentes em todas as civilizações, em função de todos os seres humanos levarem em sua constituição a imagem e semelhança de Deus – com maior ou menor precisão, em função da imperfeição moral existente na humanidade. Nenhum governante tem imunidade contra a Lei de Deus. Na tradição protestante reformada, resistir à corrupção na política é dever de todos e a vontade de Deus para cada cristão verdadeiro.
4) A corrupção na política é vista pela fé reformada como tendo origem primariamente no coração dos seres humanos. A Bíblia afirma que não há sequer uma pessoa justa neste mundo. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23). Jesus Cristo disse que é do coração dos homens e das mulheres que procedem “maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mateus 15.19-20). Quando a causa é identificada, há condições de se buscar o remédio adequado. Aqui se percebe a insuficiência de éticas humanistas reducionistas, que analisam apenas aspectos sociológicos e antropológicos da corrupção na política, deixando de incluir a dimensão pessoal: egoísmo, maldade, crueldade, despotismo, avareza, inveja, cobiça. O protestantismo reformado prega uma conversão interior dos governantes e dos governados a Deus, que se arrependam do mal e pratiquem obras de justiça.
5) Por fim, o conceito de graça comum (concedida a todos) ensina que há princípios gerais que, se seguidos e aplicados, produzirão a ética na política. Segundo este conceito, Deus abençoa a humanidade em geral com virtudes e qualidades, independentemente das convicções religiosas e políticas das pessoas. É por este motivo que encontramos quem se professa cristão e não tem ética, e encontramos a ética funcionando pelas mãos de quem não se declara cristão. Ao reconhecer a graça comum de Deus, a fé reformada entende que o caminho para a ética na política não é necessariamente converter todos ao cristianismo e nem colocar em cargos políticos quem se professa cristão, mas contribuir para que os princípios acima mencionados sejam reconhecidos e exercidos por todos, independentemente da convicção religiosa.
Não custa sonhar que um dia a fé reformada, mediante a pujança da Igreja, possa influenciar nosso país e moldar nossa cultura com uma cosmovisão bíblica, oferecendo as bases morais, espirituais e lógicas para ética na política.
[Esse post é baseado na Carta de Princípios 2006 da Universidade Presbiteriana Mackenzie]
Obras Mencionadas
BIÉLER, André, 1999. A Força Oculta dos Protestantes. São Paulo: Editora Cultura Cristã.
KUYPER, Abraham, 2002. Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã.
Extraído de: