DIVERSAS LEIS CONTRA A IDOLATRIA
(Capítulo 9 do livro "REPÚBLICA HEBRAICA", do autor Enoch C. Wines e tradução de Inez Augusto Borges.)
Lei referente a corte de cabelo
Deixe-me ilustrar essa observação com alguns exemplos. No capítulo 19 de Levítico, verso 27, encontramos a seguinte lei: "não cortarás os cabelos em redondo e nem o canto de tua barba". Esta lei tem provocado muitos escárnios da parte de homens que, sem nenhuma explicação para tal distinção, arrogam-se no direito de considerarem a si mesmos o exclusivo título de livre pensadores. Mas, para aqueles que realmente pensam com liberdade e franqueza, a lei parecerá uma direção adequada e muito importante, pois saberão que ela foi dirigida contra um costume idólatra, prevalente quando de sua promulgação. Heródoto diz que os Árabes cortavam seu cabelo arredondando em honra de Baco, que é representado como tendo cortado o seu desta maneira[1], e que o povo da Líbia cortava seus cabelos de modo a deixar um tufo arredondado no alto da cabeça. Os Idumeus, Moabitas, Amonitas e outros habitantes da Arábia Deserta são chamados de circuncidados na cabeça. O cabelo era muito utilizado pelos Gregos em rituais de adivinhações. Homero representa como um costume comum os pais dedicarem o cabelo de seus filhos a algum deus. Quando os filhos se tornassem adultos, deveriam cortar o cabelo e oferecê-los à deidade. De acordo com este costume, Aquiles, no funeral de Patroclo, corta seus cachos dourados que seu pai tinha dedicado ao deus do Esperqueu[2] e deposita-os na correnteza. Virgílio representa a mecha maior do cabelo como consagrada às criaturas infernais[3]. Sacerdotes e ministros de religiões falsas fizeram do corte de cabelo e barba proibidos por Moisés um requisito essencial para que os deuses aceitassem a adoração e derramassem bênçãos sobre seus adoradores. A erradicação da idolatria era, por assim dizer, o eixo em torno do qual girava toda a lei de Moisés e foi por causa disso que ele introduziu este estatuto proibitório em seu código.
Contra o cozimento de carne da cria no leite da mãe
No capítulo 23 de Exodo, verso 19, aparece o seguinte estatuto: "não cozinharás o cabrito no leite de sua própria mãe". Dr. Clarke[4] pensa que o único objetivo da lei era inculcar uma lição de humanidade. É provável, entretanto, que a proibição fosse dirigida contra um antigo costume idólatra. O doutor Cudworth[5] cita um comentário manuscrito de um judeu Caraíta[6] informando que os antigos pagãos tinham o costume de, quando ajuntavam os seus frutos, pegarem uma cria, cozinhar no leite da mãe e aspergirem as árvores, os campos, jardins e pomares, pensando que assim eles se tornariam ainda mais frutíferos. Spencer[7] mostrou que o mesmo costume idólatra, derivado do mesmo motivo, prevalecia entre os antigos Zabii.
Contra vestuário misturado de linho e lã
A mesma razão havia para o estatuto que proibia misturar roupas de linho e lã (Lv 19.19). Maimônides[8] informa que encontrou nos livros mágicos utilizados pelos sacerdotes idólatras, a informação de que eles se vestiam com roupas de linho tecido com lã para o propósito de realizar suas cerimônias religiosas. Eles atribuíam uma virtude divina à essa mistura. Acreditava-se que isso faria o rebanho produzir mais lã e seus campos produzirem melhores colheitas.
Lei referente a vestimentas
Sobre o mesmo fundamento repousa a lei que dizia "as para mulheres não usarem roupas pertencentes ao homem e, da mesma forma, os homens não se vestirem com roupas de mulher" (Dt 22.5). Maimônides[9] encontrou no livro dos idólatras que o homem, na sua adoração a Vênus, a Astarote dos Fenícios, deveria usar roupas de mulher e que as mulheres, em sua adoração a Marte, o Moloque do Oriente, deveriam vestir roupas de homem. Macrobio[10] cita que o antigo autor Grego Pilocoro dizia, em relação aos Asiáticos que, quando eles sacrificavam à sua Vênus, os homens se vestiam com roupas de mulher e as mulheres, com roupas de homem, para mostrar que ela era estimada igualmente por homens e mulheres. Era prática comum da idolatria confundir os sexos dos deuses, fazendo as mesmas deidades algumas vezes como deusas e outras vezes, como deuses.
Os Cipriotas representavam sua Vênus com barba, cetro e proporções masculinas, mas a vestiam de mulher. Os Sírios adoravam na sob a forma de mulher, mas vestida de homem. Em Roma, eles tinham tanto um deus quanto uma deusa Fortuna. Sérvio e Lactâncio[11] nos informam sobre uma Vênus armada. Essa doutrina da comunidade dos sexos em seus deuses levava os idólatras a confundir, até onde isso é possível, seu próprio sexo na adoração a eles.
Decorre disso o costume, tão largamente difundido, do homem e mulher vestirem roupas diferentes de seus sexos na realização de ritos religiosos. Juliu Firmico[12] descreve essa forma de adoração como sendo comum entre os Assírios e os Africanos. Deles, o costume passou para a Europa. Foi praticado em Ciprus, Caos, Argos, Atenas e outros lugares na Grécia[13]. Em Roma, parece nunca ter se tornado um costume muito comum, mas lemos sobre Clodio[14] vestindo-se de mulher e se misturando às damas Romanas numa festa da "Boa Deusa"[15]
Contra a mistura de sementes na plantação
A lei que proibia semear um campo com sementes misturadas[16] é baseada em razão semelhante. É verdade que Michaelis[17] considera esta proibição como sendo uma máxima de agricultura tão simples quanto prudente, destinada a fazer os Israelitas cuidadosos para terem suas sementes tão puras quanto possível e assim prevenir os males da agricultura negligente e preguiçosa. Mais razoável parece ser a opinião de Maimônides[18] e Spencer[19], os quais consideram esse estatuto uma questão diretamente voltada contra a idolatria da qual a lei Mosaica visava apagar e destruir até mesmo o nome. Maimônides interpreta Levítico 19.19 como proibição de misturar uma espécie de árvore junto com outra e diz que esta proibição era destinada a guardar os Israelitas contra a mais abominável e corrupta prática de idolatria. Os Zabii[20] realizavam esta forma de mistura, especialmente de olivas e cidras, como um rito religioso acompanhando-o, no momento do enxerto, com os atos mais indecentes. Dr. Spencer observa um rito de idolatria semear cevada junto com uvas secas. Por meio desta ação, os idólatras consagravam seus vinhedos a Ceres e Baco, e que era expressavam sua dependência dessas deidades para serem frutíferos. Era, de fato, uma renúncia ao cuidado do verdadeiro Deus e uma declaração da esperança do favor dos ídolos. O Bispo Patrick enfatiza que, se os Israelitas tivessem seguido esses costumes, eles, por causa da idolatria, teriam tornado impuros tanto o milho quanto as uvas que são produzidas por estas sementes.
Essas e outras leis que têm sido ousadamente reprovadas e ridicularizadas por infiéis que as consideram frívolas foram promulgadas pela sabedoria divina com o objetivo de erradicar a idolatria e estabelecer a verdade fundamental da existência do único Deus vivo. O objetivo delas era impedir que os Israelitas andassem nas ordenanças e maneiras das nações que foram expulsas de diante deles (Lv 18.3, 20.53). Essas leis foram bem adaptadas para esta finalidade. Era essencial que essas cerimônias idólatras dos gentios fossem proibidas porque, do contrário, elas fatalmente teriam conduzido os Israelitas para a idolatria.
Leis sobre o sacrificio de animais
Encontramos uma lei admirável em Levítico 17.1-7. Ela proibia, com pena de morte, que os Israelitas, enquanto viviam no deserto, matassem qualquer animal, mesmo para alimento, a não ser que ele fosse imediatamente trazido para o altar e oferecido ao Senhor. Isso certamente parece, à primeira vista, não apenas rigoroso e cruel, mas também injusto e tirânico. Mas, a lei era dirigida contra a idolatria, a qual, como logo veremos, era considerada traição ao Estado Hebreu e, portanto, justamente punida com morte. O estatuto é assim traduzido por Michaelis[21]:
Qualquer um dentre os Israelitas que matasse um boi, uma ovelha ou um cabrito, dentro ou fora do acampamento, e não o trouxesse diante da tenda da congregação, seria culpado de crime de sangue; ele tinha derramado sangue e deveria ser extirpado de entre o seu povo e, isso, para que os filhos de Israel pudessem trazer à porta da tenda da congregação o que eles tivessem feito no campo e entregá-lo ao sacerdote para ser consagrado como oferenda festiva em honra a Jeová, para que o sacerdote pudesse aspergir o sangue no altar de Jeová e queimar a gordura como uma oferta perfumada em honra a Ele; e para que o homem não pudesse, nunca mais, fazer ofertas aos sátiros[22], correndo atrás deles com luxúria idólatra.
O mesmo autor observa que[23]:
não temos motivos para conjecturar a respeito das razões e propósitos dessa lei, pois o próprio Moisés expressamente os menciona. Considerando a propensão para a idolatria que o povo tinha trazido do Egito, era necessário tomar cuidado, senão qualquer um que matasse tais animais, como era usual para sacrifícios, poderia ser culpado de estar supersticiosamente oferecendo-os em sacrifício a um ídolo. A precaução era mais razoável porque, nos tempos antigos, era muito comum fazer oferendas da carne que era destinada à alimentação. Dessa forma surgiu a suspeita, não totalmente sem fundamento, de que qualquer que matasse animais usualmente dedicados ao altar, os oferecia em sacrifício. Portanto, Moisés os advertia a nunca matar tais animais a não ser em público e oferecê-los totalmente ao verdadeiro Deus, para que assim ficasse fora de seu poder fazer qualquer oferenda a ídolos, sacrificando-os no recinto privado e sob qualquer pretexto de os utilizar para alimento.
Essa lei foi expressamente revogada quando o povo entrou na terra prometida (Dt 12.15), quando fazê-la cumprir se tornaria tirania e crueldade.
Leis sobre alimentação
Há uma parte do código Mosaico para o qual eu devo chamar a atenção do leitor em relação a isso, ou seja, no que concerne às carnes limpas e não limpas. A lei sobre este ponto tem sempre sido exposta ao ridículo por parte dos descrentes. Ela desce a detalhes tão minuciosos que os homens ignorantes a respeito de sua verdadeira natureza e finalidade têm concluído contra sua origem divina, julgando-as inadequadas para ligar os homens a Deus.
Mas, se eles apenas tivessem o trabalho de refletir que o propósito de separar um povo do contágio da idolatria universal era um propósito não indigno do governador do Universo, eles veriam as mais radiantes marcas da divina sabedoria em uma instituição que tirou daquele povo as bases para todo comércio, negócios ou amizades com as nações estrangeiras. Sem dúvida, o propósito dessa instituição, como muitas outras no sistema Mosaico, era múltiplo. Entre as finalidades que seriam alcançadas por meio dela, uma das mais importantes era fornecer às tribos escolhidas um código de dieta integral.
A opinião unânime dos melhores intérpretes, tanto judeus quanto cristãos, é que as considerações dessa natureza entraram na mente do legislador. Maimônides[24] trabalha com grande zelo e erudição para provar a veracidade desse ponto de vista na lei. Dr. Adam Clarke[25] fala que animais considerados impuros eram fontes de moléstias como escorbuto e desordens cerebrais, enquanto os limpos eram fornecedores de copiosa fonte de nutrição integral e todas as propriedades para curar doenças. M. de Pastore[26], um celebrado escritor Francês, destaca a constante atenção de Moisés com a saúde do povo como sendo um dos mais distintos traços do caráter desse legislador. A carne dos animais proibidos, tais como o porco, era certamente capaz de agravar ou mesmo de produzir doenças como a lepra, as quais se tornaram endêmicas no Oriente e persistiam de forma terrível entre os habitantes da Palestina. Propósitos de natureza moral também entravam, sem dúvida, na intenção geral da lei. A distinção dos alimentos tendia a promover o desenvolvimento moral dos Israelitas ao imprimir em suas mentes a convicção de que eles eram um "povo peculiar," e que, por isso deveriam ser uma nação santa. A proibição da ingestão de carne cuja natureza poderia estimular a propensão ao vício, simbolizava necessidade de distinguir entre as disposições e condutas que deveriam ser encorajadas e cultivadas, daquelas que deveriam ser detestadas e evitadas. Dr. Townley[27] cita Levi Barcelona, Eusébio, Orígenes, Justino Mártir, Tertuliano e outros pensadores que concordaram com esta visão.
Mas, apesar desta lei visar promover a saúde e a moral dos Hebreus, tais considerações não exaurem o escopo e intenção da mesma. Seu propósito principal era combater a idolatria, separando os Israelitas de seus vizinhos idólatras e assim prevenindo a infecção de seus exemplos relacionados à hábitos e religião. Essa opinião não está fundamentada em meras conjecturas nem mesmo sobre bases de dedução lógica a partir de boas premissas. A intenção principal das leis é, inequivocamente, declarada no capítulo 20 de Levítico, versos 20.23-26: "vós não deveis andar nas maneiras das nações as quais eu tirei de diante de vós; [...] e deveis, portanto, distinguir entre animais limpos e imundos, aves limpas e aves imundas; [...] e vós sereis santos diante de mim."
A sabedoria dessa provisão, considerando a finalidade em vista é admirável. O sagaz Michaelis[28] considera que
as amizades íntimas são, em muitos casos, formadas em torno da mesa e, com o homem com quem eu não posso nem comer e nem beber, que nossas relações de negócios sejam apenas o que elas devem ser e eu não me torne tão familiar a ponto de ser seu hóspede e ele, meu hóspede. tivermos, além disso, pela educação, uma repulsa pela comida que outros comem, isso se torna um novo obstáculo para relações mais próximas. Nada mais efetivo poderia ser imaginado para manter um povo distinto de outro. Isso fez com que a diferença entre eles estivesse sempre presente em sua mente, pois tocava em muitos pontos do contato social diário. É ainda mais eficiente em seus resultados como uma regra de distinção do que qualquer diferença doutrinária ou na forma de adoração que um homem poderia imaginar. Trata-se de uma repulsa mútua, que opera continuamente. O efeito dela pode ser demonstrado pelo fato de que, nas nações onde as distinções de alimentos são impostas como parte do seu sistema religioso, não há problemas com mudança de religião.
É perfeitamente evidente na história dos Israelitas que seu isolamento total em relação às outras nações era a única maneira, além do controle milagroso de seu entendimento e vontade, de abolir a idolatria entre eles. O Politeísmo era, então, a religião universal dos seres humanos e os Hebreus, como observa Michaelis[29] frequentemente tinham a propensão de virar sua cabeça e ser dirigidos para a crença e adoração de outros deuses.
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Extraído do capítulo 9 ("DIVERSAS LEIS CONTRA A IDOLATRIA") do livro "REPÚBLICA HEBRAICA", do autor Enoch C. Wines e tradução de Inez Augusto Borges.
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Notas:
[1] TOWNLEY, 1827.
[2] N. da T. Nome de um rio da Grécia e do "deus" deste rio. Na Iliada, de Homero, Esperqueu é pai de Menésio, um dos comandantes do exército de Aquiles.
[3] CLARKE, Adams. Commentary on The Holy Bible, 1810-26. Veja o comentário sobre Levitico 19.27.
4) N. da T. Todos os autores citados neste trecho encontram-se mencionados, sem maiores detalhamen tos das fontes primárias, na mesma obra de James Tonwnley, 1827.
5) CUDWORTH, Ralph. A Discourse concerning The Lord's Supper. Londres Printed Cotes, 1642.
6) N. da T. O Judaluno Caraita contrasta-se ao judaismo rabinico pois não considera a Toráh Oral e enfatiza apenas o valor da Torá Escrita.
7) SPENCER, Joanne. De legibus Hebraeorum ritualibus. 1686.
8) TOWNLEY, 1827, capitulo 12.
9) TOWNLEY, 1927, capitulo 12.
10) Idem, página 355. Também citado em LOWMAN, 1745, capitulo 1
11) "TOWNLEY, 1827, capítulo 12. 10 Idem, página 355. Também citado em LOWMAN, 1745, capítulo 1
12) N. da T. Lactâncio estava entre os primeiros cristãos que se tornaram conselheiros de um Imperador Romano. Ele foi conselheiro do imperador Constantino.
12) N. da T. Júlio Fírmico Materno (306-337 d.C). Advogado, Astrólogo e Apologista cristão, viveu durante o reinado do Imperador Constantino, de Roma.
13 Veja YOUNG, Arthur. An Historical Dissertation on Idolatrous Corruptions in Religion. Londres: C. Rivington, 1734, vol. 1, PP. 97-105.
14 N. da. T. Públio Clódio Pulcro, mais conhecido apenas como Clódio, foi um político da República Romana conhecido por suas táticas populistas
15) N. da. T. Bona Dea - Boa Deusa. Na mitologia romana era deusa da fertilidade e virgindade.
16 Lv 19.19; Dt 22.9.15
17 MICHAELIS, 1814, artigo 268.
18 TOWNLEY, 1827, capítulo 12.
19 SPERCER, 1686, livro 2, capítulo 18.
20 N. da. T. O nome Zabii é utilizado com referência a uma forma de religião praticada entre os caldeus, em tempos anteriores a Abraão
21) MICHAELIS, 1814, artigo 244
22) N. da T. Os sátiros, na mitologia Grega, correspondem aos faunos, na mitologia Romana. Eram seres metade homem e metade bode ou carneiros. Vagavam pelas florestas e bosques.
23) MICHAELIS, 1814, artigo 244
24) Citado por TOWNLEY, 1827, em vários lugares.
25) CLARKE, 1810-26.
26) Citado por TOWNLEY, 1827.
27) Citado por TOWNLEY, 1827.
28) MICHAELIS, 1814, artigo 203)
29) MICHAELIS, 1814, artigo 32)